terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Diálogo entre as ciências*


O século XX assistiu a grandes avanços nas relações entre psiquiatria e espiritismo

Por Rita Foelker

As ciências são tradicionalmente consideradas como paradigmas de racionalidade, que se faria presente desde a observação de fatos e dos experimentos até a anotação de relatos e formulação de conceitos e teorias. Isso, contudo, não pode ser encarado de maneira absoluta. Os cientistas são seres humanos que não apenas se conduzem pelos chamados valores epistêmicos (como falseabilidade, fertilidade, simplicidade, abrangência e consistência, por exemplo), mas que também se deixam influenciar por seus preconceitos, crenças, resistências e idiossincrasias.
A história da ciência é um repositório de casos que mostram como acontece tal influência na pesquisa, na descoberta e, em muitos casos, na preferência por uma teoria em detrimento de outra. E, por isso, existem ideias científicas que persistem por um tempo e angariam partidários, até mostrarem sua fragilidade.
Nessa história, encontramos o embate entre duas concepções científicas distintas que buscavam explicar um mesmo conjunto de eventos. No início do século XX, ocorrências de transe, estimuladas pelo mediunismo praticado em muitas religiões, despertaram grande interesse da comunidade psiquiátrica brasileira. A psiquiatria e o espiritismo possuíam visões diferentes sobre os fenômenos mediúnicos e anímicos. Enquanto o espiritismo mencionava a condição de sermos espíritos encarnados (que podiam libertar-se parcialmente do organismo físico e eventualmente comunicar-se com os desencarnados, como ponto de partida para a compreensão de uma série de fatos), a psiquiatria via nesses casos indicadores de estados patológicos.

Mediunidade ou delírio?

Segundo os autores do artigo “O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão” (ver referência no final do artigo), na primeira metade do século XX, “a comunidade psiquiátrica pertencente ao eixo Rio de Janeiro/São Paulo (...) enfatizou o papel das religiões mediúnicas como causa de loucura, chegando a considerá-la a terceira maior causa de alienação mental”.
Em 1929, o aluno João Coelho Marques apresentou à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro sua tese de doutorado em psiquiatria, intitulada “Espiritismo e ideias delirantes”, segundo a qual “o combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio, cocaína etc.), à tuberculose, à lepra, às verminoses, enfim, a todos os males que contribuem para o aniquilamento das energias vitais, físicas e psíquicas do nosso povo, da nossa raça em formação”. E ele não estava só, já que muitos trabalhos acadêmicos do período apresentaram essa tendência, como observa o professor Artur Cesar Isaia, da Universidade Federal de Santa Catarina.
Alguns anos antes, outro aluno defendera na mesma instituição carioca um ponto de vista diverso. Em 1922, Brasílio Marcondes Machado apresentou sua tese “Contribuição ao estudo da psiquiatria (espiritismo e metapsiquismo)”, que propunha a aceitação da sobrevivência da alma e a possibilidade de um diálogo entre o espiritismo e a psiquiatria, e que foi reprovada. Tal rejeição não se baseava em critérios puramente científicos. Henrique Belfort Roxo, então catedrático em medicina psiquiátrica da faculdade, pensava que as questões da alma não deveriam ser objeto de estudo da psiquiatria, já que as considerava resquícios de uma metafísica morta e enterrada pelo positivismo. Para ele, era possível pensar o surgimento de uma modalidade de doença mental a partir de um delírio desenvolvido “pela frequência de sessões de espiritismo”, chamada de delírio espírita episódico, o qual ele associava a uma preconceituosa visão das crenças e rituais praticados pelos afrodescendentes. O médico, assim como o aluno João Coelho Marques, defenderia medidas públicas de combate ao avanço da alienação mental no país pela erradicação de três fatores: a sífilis, o alcoolismo e o espiritismo.

Tudo evolui

Contudo, “o espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”, afirma Allan Kardec em O que é o espiritismo. Ela se apoia em fatos nos quais o elemento espiritual manifesta-se no âmbito mediúnico, anímico e psicossomático e, como ciência, atende satisfatoriamente aos valores epistêmicos citados no início desse artigo: falseabilidade, fertilidade, simplicidade, abrangência e consistência. Em outras palavras, o espiritismo possui afirmações testáveis, isto é, refutáveis pela observação e experiência; ele permite levar o pesquisador a novas descobertas a partir de seus postulados; oferece explicações simples para os fatos a que se refere; oferece explicações para um grande número de questões levantadas pela pesquisa; e faz afirmações que não se contradizem entre si.
O fato de ser rejeitado por alguns representantes da chamada “ciência oficial” das academias não significa que ele seja frágil ou tenha poucos argumentos. “Ciência oficial” é apenas um modo de nos referirmos a teorias predominantemente aceitas num determinado período, visto que, como recorda o professor Silvio Seno Chibeni, da Unicamp, “felizmente, não existe na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões, partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É inerente à natureza da ciência contemporânea a distribuição do poder de avaliação em múltiplas instâncias, entre as quais se encontram as academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa, agências de fomento e, principalmente, os periódicos especializados”.
O espiritismo ainda continua sujeito a alguns preconceitos extracientíficos. Na psiquiatria, atualmente, contudo, os preconceitos encontram-se mais reduzidos e localizados. O discurso psiquiátrico mudou, e uma nova compreensão da fenomenologia mediúnica conquistou espaço nas universidades.
Se antes havia preconceito e rejeição, hoje se tornou possível estabelecer um diálogo que enriquece ambas as pesquisas, a psiquiátrica e a espírita, exatamente porque a ciência não é um corpo rígido de conhecimentos, mas um conhecimento e uma atividade que evoluem.
Mas houve sempre aqueles que se adiantaram e, de maneira quase visionária, antecipando os passos futuros. Como foi o caso de Bezerra de Menezes, para quem a loucura deveria ser compreendida como um fenômeno mórbido de duplo caráter: material e imaterial, e contar com um tratamento “moral e terapêutico”: Afirma Bezerra: “No princípio, enquanto os fluidos maléficos do obsessor não têm produzido lesão cerebral, deve-se procurar elevar os sentimentos do obsidiado, incutindo-lhe na alma a paciência, a resignação e o perdão para seu perseguidor, e o desejo humilde de obtê-lo, se em outra existência foi ele o ofensor”. Enquanto tantos psiquiatras ainda acreditavam na loucura como resultado de origem orgânica ou de influência do ambiente, encontramos aqui uma explicação espiritual do problema e a proposta terapêutica condizente, iluminada por princípios de paciência, amor e perdão, que é baseada na filosofia e na ciência espíritas.


Para saber mais:

- A ciência oficial. Questões acerca da natureza do Espiritismo – IV. Por Silvio Seno Chibeni. Disponível em: http://www.espirito.org.br/portal/artigos/geeu/quest4.html
- Fé contagiosa. Por Artur Cesar Isaia para a Revista de História, 09/06/2008. http://migre.me/b5MAQ
- O discurso médico psiquiátrico em defesa do espiritismo na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro nos anos 1920. Por Artur César Isaia. http://migre.me/b5MJ2
- O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão. Revista de Psiquiatria Clínica. Por Angélica A. Silva de Almeida, Ana Maria G. R. Oda e Paulo Dalgalarrondo. http://migre.me/b5MOk 

_____
* Este texto foi originalmente publicado no Jornal Leitura Espírita, Edição 07, de Novembro de 2012.

Justiça e círculos de energia



Por Aymará / Rita Foelker

Ela não é particular, nem é vingativa, nem procura compensações individuais.

A justiça é um equilíbrio perfeito dos movimentos da energia no Universo inteiro.

Se a energia se move em círculos, a energia colocada em curso voltará à origem do impulso, não importa os caminhos percorridos e o tempo necessário, porque o tempo é um condicionamento meramente humano. E a justiça verdadeira está além da humanidade, de sua compreensão e de sua possibilidade de aplicação.

O ser humano age com seu discernimento possível, a justiça divina age com onisciência. Então, a justiça verdadeira já está acontecendo, não é preciso solicitá-la nem apressar-lhe o passo.

A justiça verdadeira tem como ponto de apoio, o Amor, em sua mais sublime expressão, e o aprendizado – a evolução – como sua meta principal.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O mundo espiritual está além ou aqui?*

Espaço e tempo são usados como referências à realidade material. E os espíritos, onde estão eles?

Por Rita Foelker

Viver como espírito encarnado é um tipo de condicionamento. Estamos condicionados, por exemplo, a perceber tudo em termos de espaço e tempo. O fato de percebermos as coisas desse modo não significa que elas realmente esgotem aí sua possibilidade de serem percebidas. Mas a filosofia já andou se ocupando disso.
Onde esse problema se junta com a localização do mundo espiritual? Podemos realmente localizá-lo em algum lugar? É o que esperamos responder, nestas páginas, pedindo alguma ajuda a Kant, a Herminio C. Miranda, além de verificar como a questão é tratada em O livro dos espíritos.

Possibilidade da experiência

Emmanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo que muito se esforçou para compreender a condição de possibilidade da experiência humana e, assim, do conhecimento. Em sua vasta obra escrita, alguns aspectos destacam-se, como as chamadas “formas puras da intuição”: o espaço e o tempo. Segundo ele, o conteúdo da experiência sensível (cores, cheiros, sons etc.) na qual estamos mergulhados somente pode ser conhecido e adquire algum sentido quando é visto com referência ao espaço e ao tempo. É impossível, diz Kant, conhecer os objetos externos sem que estejam ordenados em uma forma espacial, assim como nossa percepção interna desses mesmos objetos não é possível sem uma forma temporal. Isto é o que se depreende da leitura de sua “Estética Transcendental”.
É inegável que nossa maneira de pensar habitual transita no âmbito destas formas puras da intuição. E mesmo ao pensar realidades que não são experimentadas no espaço e no tempo por nós, como os átomos, os buracos negros, o mundo espiritual ou as experiências de quase morte (EQM), nossa tendência é partir das noções de espaço e tempo e simplesmente aplicar estas formas da intuição até o infinito – imaginando-se o infinito como uma extensão imensurável de espaço e, também, a eternidade como uma duração sem fim.
O modelo atômico de Rutherford-Bohr, por exemplo, do início do século XX, lembrava um pequeno sistema planetário. Era como se, ao nos tornarmos suficientemente minúsculos, pudéssemos viajar no “interior” de um átomo, ideia que atualmente foi abandonada. Numerosas EQM são relatadas como passagens “através de túneis”. E é difícil pensar-se num buraco negro sem pensar em “coisas” sendo sugadas para “dentro” dele...
Mas até que ponto essas aproximações conceituais são legítimas?

Limites das ideias de tempo e espaço

Alguns conceitos da chamada física clássica estão presentes nesta forma de ordenar a experiência: a independência completa da estrutura espaço-temporal em relação à matéria, a independência completa entre o observador e o objeto observado. Assim, referimo-nos ao átomo, à morte e aos buracos negros como se fossem locais pelos quais o “eu” pudesse excursionar, usando referências como “em cima”, “embaixo”, “dentro”, “fora”, entre outras similares. Parece que sempre se pode usar a física de Newton nestas instâncias. (Para Kant, a propósito, a Física newtoniana era o próprio paradigma de ciência, e ela nos oferece justamente uma imagem do mundo que parte de nossas experiências cotidianas e nelas se baseia para referir-se aos fatos.)
Não obstante, os avanços da física moderna e a teoria da relatividade restrita de Einstein não são compatíveis com essa visão clássica/newtoniana. E, de tal modo, que olhar para as coisas como dispostas num espaço tridimensional, na duração do tempo, embora continue ocorrendo implacavelmente em nossa maneira mais comum de lidar com os dados da experiência, torna-se apenas isto: uma maneira de olhar, entre outras. Um jeito de interpretar os fenômenos, um jeito semelhante à nossa experiência cotidiana, mas que não retrata precisamente a realidade a que se pretende referir, pois não podemos falar de átomos ou de partículas subatômicas como quem fala de bolinhas de gude, nem da EQM ou do mundo espiritual como lugares com latitude e longitude definidas. Enxergar as coisas assim faz parte de nossa experiência de encarnados.

O ser nas reflexões de Herminio C. Miranda

Herminio C. Miranda tece uma reflexão interessante sobre a condição do espírito encarnado. Em Alquimia da mente (Ed. Lachâtre), o autor propõe que há uma diferença entre alma (espírito encarnado) e espírito, base para compreendermos que o fato de estarmos encarnados, ligados a um cérebro, faz uma enorme diferença sobre nosso modo de pensar, agir e perceber. Para facilitar, ele propõe considerarmos a alma como personalidade (persona = máscara) e o espírito como individualidade (“individuação do princípio inteligente”, segundo Kardec). A alma se moveria no espaço mental que chamamos de consciente, enquanto o espírito/individualidade ocupa a dimensão inconsciente. Ele escreve: “Pareceu-me, ainda, que alma/personalidade/consciente liga seus terminais no hemisfério cerebral esquerdo, a fim de negociar com a vida material os encaixes de que necessita para operacionalizar seu aprendizado, ao passo que o espírito/individualidade/inconsciente instala-se no hemisfério direito, de onde não apenas monitora a alma, como mantém seus plugues psíquicos ligados no cosmos.” Diz ele, então, que não gosta dos termos consciente e inconsciente, pois o inconsciente é “muito mais consciente do que o consciente, e muito mais abrangente, experimentado, vivido e informado do que o seu tutelado, de vez que se enriquece a cada vida que passa acoplado a um corpo físico através das vivências da alma”. A cada nova existência na carne, este ser imortal tem que construir, ou montar, e programar uma nova personalidade que opere na dimensão encarnada e, mesmo ao desencarnar, se a entidade espiritual ainda não alcançou um estágio evolutivo satisfatório, pode experimentar uma “exagerada fixação na sua existência como personalidade”.
Essas reflexões dão uma ideia de como pode ser difícil passar de uma noção de tempo medido para uma dimensão sem tempo, uma vida não localizada em nenhum espaço.

Com a palavra, O livro dos espíritos

O livro dos espíritos, obra basilar da filosofia espírita, utiliza uma palavra para referir-se ao estado de espírito desencarnado: erraticidade. Estar “em erraticidade” significa não fixar-se em algum lugar determinado.
Os espíritos se associam por afinidades. E essa associação se modifica, conforme modificamos nossos padrões de pensamento e conforme evoluímos moralmente. Não há, portanto, localização absoluta de punição ou de ventura para as almas que desencarnam.
A literatura espírita muitas vezes apresenta este “jeito de olhar”, onde se busca falar de vivências no mundo espiritual, ou na mente, ou nos estados de emancipação da alma (sono, sonambulismo, êxtase) como se fossem localizados no espaço e durassem certo tempo. Ocorre, porém, que, citando Werner Heisenberg (em A ordenação da realidade), “nossa intuição habitual não é mais competente para esses domínios”. Apenas por analogia, tais conceitos espaço-temporais podem ser usados.
Como é difícil conceber uma realidade fora do espaço-tempo, o que fazemos, então, é usar o recurso da imaginação, atribuindo extensão, forma, número e duração aos elementos de uma experiência fora dos padrões cotidianos, a fim de que ela possa ser descrita em palavras e compreendida por outros.
Talvez alguém se surpreenda pelo fato de que mesmo os espíritos desencarnados podem manter-se vinculados às formas do espaço e do tempo, referindo-se à sua própria condição como se estivessem habitando determinado local que chamam de “céu” ou “inferno”. É que o desencarne não significa descondicionamento de certas formas de pensar. Segundo O livro dos espíritos, questão 966: “Muitíssimo incompleta é a vossa linguagem, para exprimir o que está fora de vós. Teve-se então que recorrer a comparações e tomaste como realidade as imagens e figuras que serviram para essas comparações. À medida, porém, que o homem se instrui, melhor vai compreendendo o que a sua linguagem não pode exprimir.”
Os espíritos errantes podem ter mais ou menos consciência de sua condição, podendo ainda prender-se a certas noções de distância e tempo. Mas nenhum espírito, ao abandonar a veste física, deve ir habitar obrigatoriamente um lugar determinado e circunscrito, um “céu” de felicidade ou um “inferno” de sofrimentos indizíveis. Nem mesmo é impositivo que ele vá para as chamadas “colônias”, como Nosso Lar, descrito na obra homônima de André Luiz.
Ressalve-se que algumas construções, como cidades e hospitais, são mantidos no mundo espiritual com o objetivo de acolher os seres recém-chegados do plano terreno, a fim de recebê-los, oferecer cuidados e orientação. Esta necessidade, porém, é passageira, e deixa de existir conforme o espírito se integra em sua nova situação.
O que se pode dizer, acerca da pergunta-título, é que esta questão provavelmente não faz nenhum sentido. A palavra “onde” pouco ou nada nos pode revelar sobre a realidade espiritual que está além de nossas percepções habituais e que não pode ser descrita em termos de extensão ou duração. Ou poderíamos dizer que o mundo espiritual interpenetra o mundo material, ele está por toda parte, sendo eventualmente acessado pelas capacidades anímicas ou mediúnicas, e também durante o sono e outros momentos de liberação parcial da alma em relação ao corpo. Podemos chamá-lo de Além? Podemos, porém, não como um lugar distante, mas como um mundo fora das nossas percepções comuns.

_____
* Este texto foi publicado no jornal Leitura Espírita, Edição 10, de fevereiro de 2013.