sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Onde fica o mundo espiritual?*


Por Rita Foelker

Kant foi um filósofo que muito se esforçou para compreender a condição de possibilidade da experiência e, assim, do conhecimento. Em sua vasta obra escrita, alguns aspectos ficaram conhecidos e dentre eles destacam-se as formas puras da intuição. Segundo ele, o conteúdo da experiência (cores, cheiros, sons etc.) na qual estamos mergulhados somente pode ser conhecido e adquire algum sentido quando é visto com referência ao espaço e ao tempo, que são as formas puras da intuição. É impossível, diz Kant, conhecer os objetos externos sem que estejam ordenados em uma forma espacial, assim como nossa percepção interna desses mesmos objetos não é possível sem uma forma temporal. Isto é o que se depreende da leitura de sua “Estética Transcendental”. As formas puras da intuição são a priori, ou seja, elas antecedem a experiência para ordená-la.
É inegável que nossa maneira de pensar habitual transita no âmbito destas formas puras da intuição. E mesmo ao pensar realidades que não são experimentadas no espaço e no tempo por nós, como os átomos, os buracos negros, o mundo espiritual ou as experiências de quase morte (EQM), nossa tendência é partir das noções de espaço e tempo e simplesmente aplicar estas formas da intuição até o infinito – imaginando-se o infinito como uma extensão imensurável de espaço e, também, a eternidade como uma duração sem fim.
O modelo atômico de Rutherford-Bohr, por exemplo, do início do século XX, lembrava um pequeno sistema planetário. Era como se, ao nos tornarmos suficientemente minúsculos, pudéssemos viajar no “interior” de um átomo. Numerosas EQM são relatadas como passagens “através de túneis”. E é difícil pensar-se num buraco negro sem pensar em “coisas” sendo sugadas para “dentro” dele.
Mas até que ponto essas aproximações conceituais são legítimas?

Limites das ideias de tempo e espaço

Alguns conceitos da chamada física clássica estão presentes nesta forma de ordenar a experiência: a independência completa da estrutura espaço-temporal em relação à matéria, a independência completa entre o sujeito observador e o objeto observado. Assim, referimo-nos ao átomo, à morte e aos buracos negros como se fossem locais pelos quais o “eu” pudesse excursionar, usando referências como “em cima”, “embaixo”, “dentro”, “fora”, entre outras similares. Parece que sempre se pode usar a física de Newton nestas instâncias. (Para Kant, a propósito, a Física newtoniana era o próprio paradigma de ciência, e ela nos oferece a uma imagem do mundo que parte de nossas experiências cotidianas e nelas se baseia para referir-se aos fatos.)
Não obstante, os avanços da física moderna e a teoria da relatividade restrita levaram ao abandono da visão clássica (não detalharemos estas mudanças no presente texto). E de tal modo, que olhar para as coisas como dispostas num espaço tridimensional da geometria euclidiana (ver quadro), embora continue ocorrendo implacavelmente em nossa maneira mais comum de lidar com os dados da experiência, torna-se apenas isto: uma maneira de olhar. Um jeito de interpretar os fenômenos, um jeito semelhante à nossa experiência cotidiana, mas que não retrata precisamente a realidade a que se pretende referir, pois não podemos falar de átomos ou de partículas subatômicas como quem fala de bolinhas de gude, nem da EQM como um lugar com latitude e longitude definidas.
A literatura espírita muitas vezes apresenta este “jeito de olhar”, onde se busca falar de vivências no mundo espiritual, ou na mente, ou nos estados de emancipação da alma (sono, sonambulismo, êxtase) como se fossem localizados no espaço e durassem certo tempo. Ocorre, porém, que, citando Heisenberg (em A Ordenação da Realidade), “nossa intuição habitual não é mais competente para esses domínios”. Apenas por analogia, tais conceitos espaço-temporais podem ser usados.
O que fazemos, então, é usar o recurso da imaginação, atribuindo extensão, forma, número e duração aos elementos de uma experiência fora dos padrões cotidianos, a fim de que ela possa ser descrita em palavras e compreendida por outros.
Talvez alguém se surpreenda pelo fato de que mesmo os espíritos desencarnados podem manter-se vinculados às formas do espaço e do tempo, referindo-se à sua própria condição como se estivessem habitando determinado local que chamam de “céu” ou “inferno”. É que o desencarne não significa descondicionamento de certas formas de pensar. Segundo O Livro dos Espíritos, questão 966: “Muitíssimo incompleta é a vossa linguagem, para exprimir o que está fora de vós. Teve-se então que recorrer a comparações e tomaste como realidade as imagens e figuras que serviram para essas comparações. À medida, porém, que o homem se instrui, melhor vai compreendendo o que a sua linguagem não pode exprimir.”
Ressalve-se que alguns lugares, como cidades e hospitais, são mantidos no mundo espiritual com o objetivo de acolher os seres recém-chegados do plano terreno, a fim de recebê-los, oferecer cuidados e orientação. Esta necessidade, porém, é passageira, e deixa de existir conforme o espírito se integra em sua nova situação.
O que se pode dizer, acerca da pergunta-título, é que esta questão provavelmente não faz nenhum sentido. A palavra “onde” pouco ou nada nos pode revelar sobre a realidade espiritual que está além de nossas percepções habituais e que não pode ser descrita em termos de extensão ou duração.



"Euclides estava de fato agindo como um físico, usando sua experiência de vida no fraco campo gravitacional da Alexandria helenística para criar uma teoria de espaços não-curvos. Ele não sabia quão limitada e acidental era sua geometria." (S. Weinberg, em Sonhos de uma teoria final)



Como expressar noções e percepções abstratas da realidade espiritual?

Escritores e artistas tentaram expressar conceitos da vida espiritual e as leis universais por escrito e, mesmo, graficmente.
Robert Fludd (1574-1637), um filósofo, artista e famoso ocultista inglês do século XVI tentou transmitir conhecimentos metafísicos na forma de desenhos. Em De Monochordum Mundi (1623), Fludd compara o Universo com um monocórdio (instrumento musical duma só corda) e, desse modo, consegue expor ideias de uma harmonia matemática e musical presente na Criação, provavelmente baseado na ideia pitagórica da “música das esferas”, em que cada corpo celeste vibraria uma nota musical. O que Fludd pretendia transmitir era a ideia de que todo o universo reproduz uma música inaudível e harmoniosa que reflete a inteligência e a unidade da criação.
Temos outros exemplos figurativos a alimentar nossa imaginação: as ilustrações de Gustave Doré, no século XIX, para a Bíblia, e as visões de Johfra Bosschart, artista holandês contemporâneo, com ampla utilização de símbolos, criando visões fantásticas parecendo dispostas num espaço tridimensional.

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*Texto publicado originalmente o site da FEAL, em 15/09/2011.

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