quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Limites da racionalidade ocidental

Uma das características do pensamento ocidental, desde a Grécia dos primeiros filósofos, tem sido colocar o seu estilo de raciocinar num pedestal. Christian Jambet (2006), chega a dizer que, ao cunhar o termo 'Oriente", o Ocidente, definiu os limites geopolíticos da sua própria racionalidade.
Esta racionalidade escolheu a ciência como caminho privilegiado rumo ao conhecimento a partir da Idade Moderna e, em geral, desprezou os outros, chamando-os de atalhos e não os incluindo em seus mapas de percursos aceitáveis.
Claro que houve um preço alto a ser pago por esta escolha, que fortaleceu o materialismo científico e filosófico. E dois dos componentes da formação desse preço foram apontados por dois outros autores contemporâneos.
Mircea Eliade (2008) aponta a perda do sentido mais profundo da realidade. B. Allan Wallace (2000), a difícil e confusa abordagem da consciência e da subjetividade pelos cientistas e religiosos, enquanto muitos filósofos admitem saber pouco ou nada sobre ela. Religiosos se apoiam em suas crenças. Cientistas, em sua descrença (?).
Esta reflexão nos ocorreu em função da psicografia postada anteriormente, intitulada "O sagrado e o profano", por Aymará (Esp.).

A "secularização" do Cosmos

O estudo de Eliade (2008) é principalmente histórico e antropológico. Ele trata essencialmente de como o ser humano desde tempos primevos tem tentado encontrar seu lugar no Mundo, reconhecendo um poder que se manifesta como realidade "sobrenatural", por trás da Natureza, mas que está relacionado aos fenômenos naturais e aos ciclos como nascimento-vida-morte, dia-noite, às estações do ano...
O mundo visível se apresenta como uma "cifra" onde, além de ser uma realidade e uma criação divina com um propósito, a Natureza constitui-se também numa mensagem ao homem, a ser desvendada e compreendida.
Árvores e cursos d'água incorporam arquétipos que se revelam àqueles que os contemplam. Esse ato de decifrar oferece ao homem orientação, isto é, conhecimento de para onde ir e como agir. Nas cosmogonias primitivas, as quatro direções cardeais assumem um papel fundamental, que orienta a construção de casas, templos e diz para onde devemos nos voltar ao formular nossas preces e realizar nossos rituais.
Não nos compete fazer aqui um resumo do livro, mas o fato é que essa maneira de ser no mundo provavelmente é uma das expressões daquilo que, na Filosofia Espírita, denominamos Lei de Adoração.
Eliade (2008, p.94) observa que as elites intelectuais "se desligam progressivamente dos padrões da religião tradicional", o que torna certos comportamentos inúteis, sem sentido. Não falaremos aqui dos muitos casos em que a religião tradicional se perde de sua proposta originária, virando uma burocracia esvaziada, repleta de ritos e normas sem verdadeira conexão com as realidades invisíveis que pregam.
No exemplo que Eliade oferece, da China, o autor observa que "a dessacralização da Natureza é obra de uma minoria, principalmente de letrados", e que "esse processo nunca foi totalmente levado a cabo" (2008, p.126-127), pois "a 'contemplação estética' da Natureza conserva ainda, mesmo para os letrados mais sofisticados, um prestígio religioso" (id., p.127). Eliade conclui que a "secularização definitiva da Natureza" só foi alcançada por um limitado número de modernos.
Talvez possamos afirmar que o próprio esvaziamento do sentido mais profundo das religiões tradicionais seja parcialmente responsável pelo afastamento desses "letrados", mas que a necessidade de ligação com o sentido mais elevado da existência não nos abandona.

O tabu da subjetividade

O segundo componente do que chamamos de "preço pago pelo pensamento ocidental" nos vem da obra de B. Allan Wallace (2000), O tabu da subjetividade. O fato é que mesmo toda a tecnologia existente nos dias atuais nada pode afirmar sobre a presença ou ausência de qualquer tipo de consciência, visto que os cientistas "nem sabem exatamente o que deve ser medido" (2000, p.3). Falta um esquema teórico dentro do qual conduzir as pesquisas nessa direção, pois a ciência sempre tem olhado para fora, para o concreto e palpável o que, segundo Wallace, "eclipsou conhecimentos anteriores da natureza interna da consciência (2000, p.4). Então, a consciência virou simplesmente um tabu perante a ciência materialista, que tenta evitá-la perseverantemente.
Segundo o autor, desenvolvemos uma radicalização em favor da valorização do conhecimento científico, a qual ele chama de cientismo. Ele aponta algumas características atribuídas à ciência, nesta visão.
A primeira delas a apresenta como uma disciplina de observação rigorosa e experimentação, seguida de uma análise racional (frequentemente quantitativa) dos dados obtidos.  Segundo o autor, "o desprezo do materialismo científico moldou o próprio conceito de observação (id., p.29). O cientista ideal suprimiria suas crenças e emoções, sua formação, seus medos e compulsões, investigando de forma sempre racional e imparcial. Observamos que isto não é um fato, pois apesar da busca de objetividade, há muito mais fatores subjetivos envolvidos na pesquisa do que às vezes se admite.
Outra característica do conhecimento científico é o ceticismo. Segundo ele, deve-se questionar todos os pressupostos ainda não questionados do conhecimento, duvidar do senso comum, examinar as aparências de forma crítica. Em geral, contudo, apesar de um ceticismo moderado poder ser considerado saudável à pesquisa, parece que a necessidade de limites para ele não é percebida. É comum o ceticismo beirar as raias do absurdo e, contudo, recusar-se a desenvolver uma atitude cética perante seu próprio exercício.
Ressalte-se ainda que, apesar da ciência moderna ter nascido de um anseio pelo conhecimento absolutamente certo da Natureza, atualmente as verdades científicas são consideradas provisórias e mutáveis. É preciso contudo destacar que a ciência é comumente encarada como um corpo único e coerente de conhecimentos, o que está muito longe de ser um fato. Wallace (2000) observa que a verdade em ciência, hoje em dia, é determinada pela adequação empírica e pelo sucesso de suas predições. Isso faz com que existam muitos métodos, muitas teorias correntes incompatíveis entre si, que produziram afirmações empiricamente adequadas e são capazes de predizer eventos, apesar de sua incompatibilidade. (Incompatibilidade, no sentido de que, entre a teoria A e a teoria B, somente uma delas, pode ser verdadeira, e que jamais A e B seriam simultaneamente verdadeiras. Mas ambas são aceitas e defendidas por grupos diferentes de pesquisadores.)
Isto significa que a ciência também não detém respostas cabais, e que embora se constitua num corpo de conhecimento respeitável, não é suficiente para resolver o problema do ser humano perante si mesmo e perante o sentido de sua vida, que continua relevante. Este problema já era identificado pelo físico contemporâneo Max Planck em 1932, quando escreveu  Para onde vai a ciência?, onde observa que, para a ciência moderna, a solução de um mistério leva à descoberta de outro e afirma que "a ciência não pode resolver o mistério último da Natureza. E isso porque, em última análise, nós mesmos somos parte da Natureza e, portanto, parte do mistério que estamos tentando resolver" (Planck, 1941[1932], p.238).
Ou seja, entender a Natureza não será possível se não entendermos a nós mesmos, em toda a nossa complexidade, e não apenas como unidades biológicas, conjuntos de processos químicos ou componentes de sociedades.
Se a ciência tem seus limites, porém, a racionalidade ocidental não precisa confinar-se a eles. "Tipos não científicos de observação também revelam fenômenos" (Wallace, 2000, p.29). E isto fica nítido se nos livramos do fundamentalismo cientificista e do ceticismo extremado, que oferece para os fenômenos subjetivos e espirituais pretensas explicações pífias, incongruentes e insatisfatórias, e aceitamos olhar para o quadro mais abrangente, onde estes fenômenos podem se inserir coerentemente, ainda que os instrumentos em laboratórios  não possam detectá-los ou mensurá-los.
Afinal, a questão sobre nosso lugar e nossa função no Universo atravessa os milênios. E parece ser nossa tarefa esclarecê-la.

Referências:

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2a. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
JAMBET, Christian. A lógica dos orientais. Rio de Janeiro: Globo, 2006.
PLANCK, Max. A dónde va la ciencia? Buenos Aires: Losada, 1941.
WALLACE, B. Allan. The taboo of subjectivity: toward a new science of consciousness. Nova York: Oxford, 2000.

Frases
NASA/Wikipedia

"A mais bela experiência que podemos ter é a do mistério. Ele é a emoção fundamental que se acha no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência." (Albert Einstein)

"Quem possui a ciência e a arte
possui também a religião:
Quem não possui nenhuma delas
melhor faria em ter a religião."
(Goethe)

Um comentário:

  1. A ciência por mais segura que seja,é um terreno movediço,afinal a pesquisa científica de hoje quase sempre desmente a de ontem.

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