terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O sagrado e o profano

Por Aymará (Esp.) / Rita Foelker
Texto inédito



O sagrado

A ideia do sagrado não é uma invenção humana, ela é uma necessidade espiritual nascida do reconhecimento do grande elo que une todas as coisas e todos os seres. Este elo não veio da mente de um homem, mas ele antecedeu a origem humana, já nos reinos inferiores da Criação.

Hoje é comum querer decretar que objetos e espaços são sagrados. Eu posso ver a marca do pé de um homem que considero santo e dizer que o barro daquela pegada é sagrado e ungir minha testa com ele. Mas este ato não modifica o barro, ele apenas estabelece para mim mesmo uma relação de tipo especial com aquele barro e o seu significado. É assim que, de certo modo, uma aliança de matrimônio pode se tornar sagrada para alguém, ou uma lápide, ou uma árvore...

Este é um tipo de sentido que se atribui a objetos, semelhante à sacralidade do elo que une todas as coisas, mas é mais restrito e liga aquele objeto apenas ao seu sentido para mim. E se é sincero este vínculo, devo vivenciá-lo com todo meu coração, mas sem esperar que assim seja pra outras pessoas, visto que cada ser deve ser livre na sua ligação sagrada e profunda com todas as coisas e todos os seres.

É um problema quando alguém pretende impor a outrem significados para coisas que afirma serem sagradas. Como quando tentaram dizer aos nativos americanos que a Bíblia era sagrada, que o nome de Jesus ou a hóstia eram sagrados. Porque a ideia do sagrado distorcida pela vaidade do ego e pela cegueira do orgulho serviu e ainda serve para controlar pessoas que necessitam de um encontro com o sagrado, mas ainda não sabem realmente onde ele está, embora intuam que ele existe.

A sensação de que existe algo perene por detrás das mudanças, de que o fluxo dos fatos e dos bens e das notícias não representa o todo de nossas vidas, de que há algo a ser descoberto e que atende pelo nome de “eternidade” não nos persegue, porque ela não é exterior: ela nos empurra de dentro de nossa própria alma ao reconhecimento, à gratidão e ao desvendamento das realidades superiores onde nossas vidas e nosso progresso são sustentados. E esta é a essência de todas as nossas buscas espirituais.

O profano

A ideia do profano é uma invenção humana. Ela é uma construção mental nascida da ideia da separação entre todas as coisas e seus significados. As construções puramente mentais existem num certo sentido, elas não foram inventadas pelos relativistas. Elas existem no espaço do texto e do pensamento. Mas as construções mentais são apenas uma parcela do conhecimento humano.

Hoje é comum olhar todos os objetos e espaços como profanos, como se sua razão de ser se esgotasse num processo casuístico ou numa finalidade reconhecida como meramente utilitária ou hedonista. Eu posso contemplar uma macieira apenas pelo ponto de vista da sua capacidade de produzir maçãs para nutrição do meu corpo e deleite do paladar, e entender que todo seu valor se resume à sua viabilidade econômica. Posso esquecer que ela é uma manifestação da vida que se reparte entre todos os seres e coloca todos os seres em codependência uns dos outros.

Eu posso cortar, decepar, triturar a realidade com a minha razão. E eis porque a filosofia e alguns campos da cultura, como a literatura, ao falar de macieiras ou de flores ou de céus, deparam-se com o vazio de sentido. Apreciam as culturas e os esforços humanos com um senso de inutilidade e monotonia, porque parece que os seres humanos estão sempre lutando para construir um mundo que afinal não quer dizer nada... e onde tudo acaba por perecer... E se assim parece, é porque tudo foi separado em partes que não parecem representar algo, se não as olhamos sobre o pano de fundo do todo.

É um problema quando se tenta convencer pessoas de que nada tem sentido e que tudo é profano – o que vale dizer que pode ser profanado por nossas intenções mais nefastas e nossos impulsos mais baixos. Problema, pois a ideia do profano ainda serve para mudar o foco da necessidade espiritual do reconhecimento e vivência da dimensão sagrada, sacralizando bobagens, elegendo ídolos, escravizando a própria mente e emoção ou instituindo o culto a si mesmo, à própria vaidade e interesses.

Mas a sensação de que existe algo perene por detrás da mutabilidade e inconstância persiste em nós. Não conseguimos nos livrar dela, porque ela já está no ser espiritual como semente a ser desenvolvida, não pode ser arrancada... E, nem mesmo, ignorada para sempre.

3 comentários:

  1. Lindo texto Rita. Sabe, há tempos tenho me deparado com essa sensação de que se escolho um objeto e sobre ele derramo toda minha fé, de que importa o objeto, se, no fundo, o que importa é como ele é capaz de me transformar e como me ligo a ele? O objeto é apenas um pretexto para a transformação que se processa em mim... Beijo e parabéns pela excelente reflexão

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  2. Obrigada, mas não são palavras e ideias minhas. São de Aymará, um Espírito que recentemente comecei a psicografar. Ainda estamos nos ajustando. Eu creio que este movimento de fixar-se no objeto em vez de penetrar no seu sentido mais profundo ainda é muito característico do ser humano. Isso me lembra um pouco o "obstáculo substancialista" de Bachelard - rs - a insistência de associar propriedades a determinadas substâncias químicas, como se a substância fosse a razão única de todas as suas qualidades, quando elas de fato derivam de relações entre substâncias. Enfim, nada pode ser visto fora das relações em que está inserido, ou será visto pessimamente... Obrigada pelo comentário, beijo.

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  3. Será que o ser humano um dia terá essa visão global da realidade?

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