sábado, 10 de março de 2012

Natureza e sobrenatureza*

Por Rita Foelker

Imagem: Associação Mata Ciliar
O ser humano pertence à natureza ou é uma criatura à parte (talvez, acima dela)? O que a filosofia espírita pensa a respeito? Quais as consequências desse pensamento para o mundo de hoje?

Edgar Morin, abre o primeiro capítulo do livro O paradigma perdido: a natureza humana[i] com algumas reflexões inquietantes. Ele fala de como o ser humano usou seu conhecimento para se destacar da natureza e reduzi-la a objeto, domesticá-la, dominá-la.
Confinamos animais em jaulas; os diferentes, em reservas; edificamos nossas cidades em pedra e aço, fomos ao espaço, compusemos sinfonias e, por algum mecanismo psicológico que persistiu por séculos, passamos a nos acreditar seres sobrenaturais (acima ou fora da Natureza), segundo Morin. Não creio que esta afirmação precise ser comprovada.
Descartes, filósofo da Idade Moderna, começou esse movimento na filosofia ocidental, em suas Meditações metafísicas. Por meio de seu solilóquio que narra as suas dúvidas e sua busca de clareza e distinção do conhecimento, o filósofo aparece isolado das coisas que são objeto de sua investigação. Ele contempla o mundo exterior, cuja existência tenta provar, e passa a enxergar-se como sujeito que visa objetos totalmente separados de si mesmo, os quais pode conhecer e manipular. Morin observa que foi a partir dessas ideias de Descartes que aprendemos a pensar "contra a Natureza", assumindo a missão de subjugá-la e dominá-la como algo a que não pertencemos. Afinal, ela seria apenas uma coisa e nós seríamos seres inteligentes e independentes do que ocorrer com ela.


Modos de ver e de agir

Observamos, hoje em dia, os efeitos perniciosos dessa visão fragmentada da realidade em duas camadas superpostas: sujeito/objeto, homem/natureza, dominador/dominado, eu/os outros. Tal ideia de separação e fragmentação tomou conta de nossos pensamentos e nos tornou reféns de uma concepção equivocada da existência, a qual é importante rever, por razões a seguir.
Outros autores, como David Bohm, observam as dificuldades que essa visão de mundo oferece ao bem estar da humanidade, ao próprio equilíbrio ecológico, comprometendo nossa sobrevivência como espécie. Em Sobre a criatividade, Bohm escreve: “Consideremos, por exemplo, a questão do estabelecimento de um equilíbrio ecológico apropriado. Isso exige que o mundo inteiro, com toda a atividade humana, seja considerado uma unidade integral e contínua. Se as pessoas que estudam ecologia e tentam aplicar seu conhecimento, sem saber, estão comprometidas com interesses econômicos, políticos, sociais ou nacionais próprios ou de seus grupos, como poderiam permitir que o universal seja prioridade em seus pensamentos? Inevitavelmente haverá pressões e uma tendência contínua a se pensar de modo fragmentário, apropriado à necessidade de colocar os interesses individuais em primeiro lugar. E não será possível pensar sobre esse assunto e falar sobre aspectos relevantes à totalidade dos ciclos ecológicos do planeta”[ii].
Quando me percebo pertencendo ao todo da Natureza, penso, sinto e ajo de certa forma; quando me ponho à distância dela, muda meu sentir, meu pensar e minha ação. Ou seja: partindo do que Bohm escreve, temos consequências positivas de se passar a considerar a Natureza como um todo interdependente e a nós mesmos como partes dela.


Visão na filosofia espírita

Aqui, talvez surpreendentemente, encontraremos um ponto onde a filosofia espírita também já estava adiante de seu tempo, no século XIX: a ideia de que tudo pertence à Natureza – incluindo-se os espíritos – e de que não existe nada que seja sobrenatural, pois todas as leis e todos os seres são naturais, e todos os fenômenos se explicam por causas naturais.
No item 10 do capítulo 2 de O livro dos médiuns, lemos que “aos olhos daqueles que veem na matéria a única potência da Natureza, tudo o que não pode ser explicado pelas leis materiais é maravilhoso ou sobrenatural.” Quer dizer que a origem da ideia de uma “sobrenatureza” é atribuída às crenças materialistas. Em sua percepção da realidade, contudo, a doutrina espírita inovava quando se propunha a explicar os próprios fenômenos mediúnicos como efeitos de causas naturais, ainda que desconhecidas ou invisíveis. De acordo com ela, não há nada que não pertença à Natureza, enquanto Criação divina.
À época e ainda hoje, a religião era e continua sendo uma das instituições que vê na matéria a “única potência da Natureza”, por isso chama de sobrenatural tudo o que não pode ser explicado materialmente. O espírito é um ser à parte. Essa mesma religião contribuiu, portanto, para uma visão cindida do mundo, enquanto a filosofia espírita propunha uma visão integrada.
Essa noção espírita é reforçada pelo exposto sobre as “Ocupações e missões dos espíritos”, no capítulo 10 da 2ª parte de O livro dos espíritos. A questão 558 indaga se há algo mais que cabe aos espíritos fazerem, além de progredir individualmente. A resposta é que “eles concorrem para a harmonia do Universo ao executar os desígnios de Deus”. A missão dos espíritos encarnados, segundo a questão 573, consiste em “instruir os homens, ajudar em seu adiantamento, melhorar suas instituições pelos meios diretos e materiais; mas as missões são mais ou menos gerais e importantes: aquele que cultiva a terra realiza uma missão, como aquele que governa ou que instrui. Tudo se encadeia na Natureza; ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a realização dos desígnios da Providência. Cada um tem sua missão na Terra, cada um pode ser útil para alguma coisa”.
Uma visão de Natureza na qual tudo se encadeia, interage e interdepende, como a presente nas obras básicas do espiritismo, é o caminho para as decisões que afetarão positivamente a humanidade, o meio ambiente e o planeta. Stanislav e Christina Grof[iii] observam que tal visão é um item fundamental para as mudanças que precisam acontecer em nossa forma de pensar, decidir e agir. “Uma nova compreensão da unidade de todas as coisas (...) resulta em preocupações fortemente ecológicas e em maior tolerância para com os demais seres humanos. A consideração para com a humanidade, a compaixão por todas as formas de vida e o raciocínio que leva em conta todo o planeta assumem prioridade em relação aos estreitos interesses individuais, familiares, político-partidários, classistas, nacionais e sectários. O que nos une a todos e o que temos em comum tornam-se mais importantes que nossas diferenças, que são vistas mais como enriquecedoras que ameaçadoras”.
Os pensamentos e decisões que visam ao todo, que repousam sobre a compreensão da unidade da Natureza e o respeito a todas as criaturas, têm lugar na filosofia espírita desde a segunda metade do século XIX, mas ainda precisam participar mais efetivamente de nossas vidas cotidianas, de nossas pequenas e grandes escolhas. É preciso avançar na percepção das decorrências dessa noção de pertença e responsabilidade de cada ser perante a Natureza e a vida.

Pensar contra a Natureza

Um dos sintomas contemporâneos de nossa forma de pensar contra a Natureza é o tipo de imposição de padrões artificiais de beleza exercida sobre as mulheres, ainda que seja tudo uma grande fantasia, visto que há limites para as alterações físicas que podemos fazer em nós mesmos.
Isso leva muitas mulheres a atitudes contrárias à sua própria saúde orgânica e psicológica, gerando distúrbios gravíssimos.



[i] Lisboa: Publicações Europa-América, 1973.
[ii] BOHM, David. Sobre a criatividade. São Paulo: Unesp, 2011. p.72.
[iii] WALSH, Roger. Caminhos além do ego. São Paulo: Cultrix, 1997. p.236.

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* Texto publicado originalmente no site da FEAL - Fundação Espírita André Luiz - em Março de 2012.

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