terça-feira, 28 de agosto de 2012

Como usar a liberdade*

O pensamento de Kant em conexão com o dever moral segundo o espiritismo

Por Rita Foelker

Uma das mais conhecidas noções presentes na filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) diz respeito ao dever. A expressão mais clara e sintética desse dever surge no chamado “imperativo categórico”: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.
A filosofia de Kant contém algumas noções básicas, que explicam sua maneira de pensar os conceitos diversos, como é o caso do dever que, segundo ele, assenta-se sobre uma ideia muito peculiar de razão.
Razão é um conceito central no kantismo. Para Kant, a razão pura é universal – não pertence a um único indivíduo – e funciona como condição de possibilidade do conhecimento. A estrutura dessa razão universal é a priori: preexiste à experiência, mas só o experimentar possibilita o conhecimento dos conteúdos de que ela vai se ocupar. E é por meio da filosofia, que a razão conhece a si mesma e determina a possibilidade e o limite do conhecimento que é capaz de atingir.
Segundo o filósofo, as coisas que se pode experimentar, pode-se conhecer. As coisas que não podem ser conhecidas (experimentalmente), contudo, ainda podem ser pensadas, a partir da estrutura da razão. E há coisas não apenas podem, mas que precisam ser pensadas, como é o caso da moral e do dever, relacionadas à liberdade e à autonomia do sujeito, que estão dentro do ser humano e inacessíveis à experiência do conhecimento objetivo.
Kant nota que, enquanto na Natureza impera a necessidade, pelo encadeamento das causas e efeitos presente nas leis naturais, no domínio humano existe a liberdade de estabelecer fins éticos e leis para que estes fins sejam atingidos, contexto em que se precisa pensar no dever. Como observa Marilena Chauí comentando Kant, em Filosofia (Ed. Ática), o dever, “longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral”.
Nesse sentido é que se pode entender a diferença entre uma “máxima” e uma “lei”: a máxima é um princípio subjetivo de ação, válido para um indivíduo, enquanto uma lei é um princípio objetivo, que vale para todos os seres. Obedecer ao imperativo categórico, portanto, é obedecer a um princípio universal com base na razão compartilhada por todos os seres.

O dever como parâmetro para ação

A instrução intitulada “O dever”, assinada por Lázaro no ano de 1863 e apresentada n’ O evangelho segundo o espiritismo afirma que: “O dever é a obrigação moral da criatura para consigo mesma, primeiro, e, em seguida, para com os outros. O dever é a lei da vida. Com ele deparamos nas mais ínfimas particularidades, como nos atos mais elevados.” Vemos claramente que a ideia do dever surge, na mensagem de Lázaro como em Kant, a partir de uma máxima para gerir a conduta pessoal e torna-se uma lei para agir para com os outros, como lei da própria vida. Este movimento do subjetivo para o objetivo pressupõe uma razão universal, caso contrário cada um só poderia pensar racionalmente sua própria conduta pessoal.
O dever segundo o espiritismo, contudo, tem a razão como fundamento? Veremos que sim. Lemos mais adiante, na mesma mensagem, que “na ordem dos sentimentos, o dever é muito difícil de cumprir-se, por se achar em antagonismo com as atrações do interesse e do coração”. A noção do dever, algumas vezes, contradiz o nosso interesse e o nosso sentimento, contudo, à razão cabe ponderar e dirigir a ação.
Para cumprirmos nosso dever perante nós mesmos e perante nossa consciência, Lázaro oferece um raciocínio: “O dever principia, para cada um de vós, exatamente no ponto em que ameaçais a felicidade ou a tranquilidade do vosso próximo; acaba no limite que não desejais ninguém transponha com relação a vós”. E o autor espiritual também oferece um parâmetro universal: “Deus criou todos os homens iguais para a dor. (...) A igualdade em face da dor é uma sublime providência de Deus, que quer que todos os seus filhos, instruídos pela experiência comum, não pratiquem o mal, alegando ignorância de seus efeitos.” Significa que a experiência da dor nos dá o conhecimento que permite pensar e escolher nossas condutas perante o próximo – o que nos aproxima novamente da noção kantiana, do conhecer a partir do que experimentamos... mas isso já seria outro texto.
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* Texto publicado originalmente na edição 05, Setembro de 2012, do jornal Leitura Espírita.

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