quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A razão e suas armadilhas


Compreender os limites para confiar nas possibilidades do raciocínio humano

Por Rita Foelker*

Quando se fala em espiritismo, é comum que os estudiosos de sua filosofia logo pensem em fé raciocinada. No entanto, Kardec e os espíritos não se cansam de afirmar que a razão pode falhar. Pode parecer uma inconsistência: se necessito de uma base sólida para a fé e a razão é falível, como poderei confiar nela?
Por outro lado, a importância de se poder basear a fé na razão é crucial no espiritismo e dá maior sentido ao tripé ciência/filosofia/moral, associando o conhecimento ao modo de pensar, dessa associação decorrendo nossas maneiras de agir.
Entender a função que Kardec e os espíritos atribuíram à razão e o melhor modo de evitar suas armadilhas é o que se pretende nesse artigo. Para isso, buscaremos suporte em algumas teses de um dos mais respeitados pensadores do século XX a abordar o conhecimento, o austríaco Karl Popper (1902-1994).

Armadilhas da razão

Para admitirmos a existência de Deus, para aceitarmos a necessidade da reencarnação, os espíritos da Codificação e o próprio Kardec solicitam que utilizemos a razão. À questão 4 de O livro dos espíritos, sobre onde se pode encontrar a prova da existência de Deus, respondem os espíritos:  “Num axioma que aplicais às vossas ciências. Não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão responderá.” Sobre o princípio da reencarnação, diz o mestre lionês: “tê-la-íamos repelido, mesmo que provindo dos espíritos, se nos parecera contrária à razão” (LE – item 222). Ao tratar dos atributos de Deus, a razão é novamente mencionada. São todos pontos fundamentais da filosofia espírita.
No entanto, já na “Introdução” ao mesmo livro, lemos que “o homem que julga infalível a sua razão está bem perto do erro”.
Pouco adiante, contudo, Kardec oferece uma ideia mais precisa do que considera um ponto frágil da razão humana: “O que se chama razão não é muitas vezes senão orgulho disfarçado e quem quer que se considere infalível apresenta-se como igual a Deus.” Então, parece que o problema não está na razão, porém, no orgulho, o que vai se confirmar na resposta que os espíritos deram à questão 75a d’O livro dos espíritos: “Por que nem sempre é guia infalível a razão? Seria infalível, se não fosse falseada pela má educação, pelo orgulho e pelo egoísmo”.
Como não se pode ter absoluta certeza de que a razão não será capturada em pelo menos uma dessas três armadilhas, mas precisamos confiar no poder da razão, talvez possamos considerá-la como um instrumento de avaliação de conhecimentos, mas não uma fonte absoluta deles... Essa é uma consequência da teoria de Karl Popper, filósofo austríaco, relacionada à validade do conhecimento e ao uso da razão.

Conhecimento e autoridade

Ao ouvir uma afirmação nova ou surpreendente, é comum perguntar-se “como você sabe disso?”, buscando identificar a fonte ou origem do conhecimento. Questionar a fonte do conhecimento, porém, leva a um beco sem saída. A maioria das coisas que cremos saber não nos veio por experiência direta, mas de tradições, de leituras e relatos, cuja fonte não nos será acessível.
Quando pensamos, por exemplo, nas tábuas dos Dez Mandamentos que, segundo a Bíblia, Moisés entregou ao povo hebreu, a primeira imagem que mais comumente nos ocorre é a de duas placas grandes, com a parte superior convexa. De fato, vimos muitas figuras religiosas e artísticas retratando esse momento. Mas não temos como saber se elas de fato existiram, se tinham esse formato ou se eram aquelas pequenas tabuinhas que os sumérios preenchiam de escrita cuneiforme, se elas eram retangulares, ou irregulares. E, apesar disso, estamos prontos a admitir que elas eram como foram mostradas para nós durante a vida.
Sobre isso, poderíamos, talvez, buscar historiadores confiáveis, mas ainda assim estaríamos envolvidos com questões de autenticidade, de fidedignidade, o que nos enovelaria em uma rede ainda maior de questionamentos. Quando raciocinamos sobre esse tipo de relatos ou afirmações, além de não estarmos absolutamente certos quanto à sua correspondência com a realidade, podemos também cometer equívocos por desatenção, por preconceitos ou outros motivos, além da má educação, orgulho e egoísmo citados pelos espíritos.
Boa parte daquilo que assumimos saber e sobre que raciocinamos vem também dos livros. Mas livros apenas relatam fatos, propõem raciocínios, expõem argumentos, além de terem sido escritos por pessoas que têm seu próprio entendimento, opiniões e intenções, pessoas sujeitas à sua própria cultura e educação.
Percebe-se, assim, que a possibilidade de um conhecimento autenticado pela sua fonte é remota, o que leva a um expediente a que muitos recorrem: o uso da autoridade. Alguns autores teriam mais autoridade para fazer certas afirmações que outros. Algumas fontes teriam mais peso que outras, na defesa de uma tese. O princípio de autoridade é antigo na história e era muito usado na filosofia escolástica, em disputas filosófico-teológicas em que os argumentos eram válidos poderiam apenas por serem atribuídos aos antigos, como Platão e Aristóteles, aos padres da igreja, aos papas e os santos.
Podemos, sem dúvida, dizer que algumas fontes são mais confiáveis que outras. Mas estabelecer uma confiabilidade absoluta baseada no nome de um autor ou livro é temerário e pode levar a extremos de fanatismo e irracionalidade, seja ele encarnado, médium ou espírito.
Karl Popper tem uma proposta de solução para o problema. Ele entende que as questões da origem e da validade de um conhecimento são distintas e assim precisam ser consideradas. Segundo ele, teorias do conhecimento tradicionais tendem a não contestar a legitimidade de afirmações diversas, apenas pela citação de suas fontes, como se o conhecimento pudesse “legitimar-se por sua linhagem”. A aceitação da autoridade como motivo principal para crermos numa afirmação, porém, levada ao extremo, desconsidera as aberrações cognitivas e até as morais, porque a autoridade pode legitimar qualquer proposição.
Considerando que não existe fonte pura de conhecimento, e que equívocos e erros sempre podem ocorrer, Popper entende que nossa melhor chance está em encontrar meios de identificar e gradativamente eliminar possíveis erros. E é aqui que surge a necessidade do uso da razão.
Parece-nos, portanto, muito importante compreender que nossa razão tem seus limites, conforme nos recorda Platão em comentário à questão 1009 de O livro dos espíritos, não obstante afirmar ser ela, como a temos, uma dádiva de Deus.
Diante da limitação e da falibilidade da razão, contudo, o que se pode fazer?

A solução dos gregos

Popper nos apresenta uma solução para o problema encontrada pelos gregos, que se encontra nos primórdios da filosofia ocidental: o debate crítico. Ele observa que quase todas as civilizações criavam escolas para transmitir ensinamentos cosmológicos e religiosos, locais que tinham como grande objetivo preservar uma doutrina e uma tradição. Em locais como esses, as mudanças, ou não existem, ou são apresentadas como reafirmações dos conceitos do mestre. É um clima propício para o surgimento de cismas (dissidências) e heresias (doutrinas, ideias ou práticas que se opõem ao que é estabelecido). E sabemos aonde as acusações de heresia conduziram muitas das vozes discordantes da interpretação da igreja católica, num passado fartamente documentado.
Na Grécia, a escola pitagórica tinha uma estrutura semelhante às de ordens religiosas fechadas, com estilo de vida e conhecimentos secreto. Fora desse ambiente, contudo, observa-se um fluxo constante de ideias, mestres debatendo com alunos, como é o caso das discordâncias entre Tales (o mestre) e Anaximandro (o discípulo) onde, segundo Popper sugere, “Tales teria encorajado ativamente a crítica dos discípulos”, fundando assim “uma nova relação de liberdade, baseada em uma nova relação entre mestre e discípulo”.
Tal atitude vem de uma percepção de que “nossas tentativas de ver e descobrir a verdade não são definitivas, mas passíveis de aprimoramento” e de que “a crítica e o debate são os únicos meios de chegar mais perto da verdade”.
O caráter progressivo do espiritismo é uma das suas características destacadas por Kardec em vários pontos da Codificação, como neste de Obras póstumas: “Fundado de acordo com o estado presente dos conhecimentos, tem ele que se modificar e completar à medida que novas observações lhe demonstrarem as deficiências ou os defeitos.” Considerando, tal qual Popper, o estado dos conhecimentos humanos como provisório, o Codificador prevê necessidade de revisões e mudanças, mas adverte que “as modificações não lhe devem ser introduzidas levianamente, nem com precipitação. Hão de ser obra dos congressos orgânicos que, à revisão periódica dos estatutos constitutivos, acrescentará a do formulário dos princípios”. Congressos pressupõem reunião de pessoas e troca de ideias, em uma palavra: debate crítico.
Em A gênese, somos lembrados de que “os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo e das pesquisas o homem, nem para lhe transmitirem, inteiramente pronta, nenhuma ciência”. Convém não nos esquecermos disso.

Limites da inteligência humana

Os espíritos dizem a Kardec, respondendo à questão 83 de O livro dos espíritos: “Há muitas coisas que não compreendeis, porque tendes limitada a inteligência. Isso, porém, não é razão para que as repilais. O filho não compreende tudo o que a seu pai é compreensível, nem o ignorante tudo o que o sábio apreende.” A apreensão da verdade é, portanto, gradativa, segundo a evolução de cada criatura. (R.F.)

Para saber mais:
A gênese, de Allan Kardec.
Textos escolhidos, de Karl Popper. Org. David Miller. Ed. Contraponto/PUC-Rio
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* Matéria em destaque publicada no jornal Leitura Espírita nº 7, de Outubro de 2012.

Um comentário:

  1. Rita, muito bom o seu post. Creio que vc já deve ter lido tb a crítica de P. Feyerabend sobre a razão. Esse filósofo tem um ponto de vista ainda mais crítico sobre o uso excessivo do que se chama razão.

    O que nos preocupa, porém, é que muitos que pretendem 'revisar' ou 'atualizar' os principios da DE o fazem de forma leviana e por 'razões' claramente ligadas ao orgulho e ao egoísmo.

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