Por Rita Foelker
Viver como espírito encarnado é um tipo de condicionamento.
Estamos condicionados, por exemplo, a perceber tudo em termos de espaço e
tempo. O fato de percebermos as coisas desse modo não significa que elas
realmente esgotem aí sua possibilidade de serem percebidas. Mas a filosofia já
andou se ocupando disso.
Onde esse problema se junta com a localização do mundo
espiritual? Podemos realmente localizá-lo em algum lugar? É o que esperamos
responder, nestas páginas, pedindo alguma ajuda a Kant, a Herminio C. Miranda,
além de verificar como a questão é tratada em O livro dos espíritos.
Possibilidade da
experiência
Emmanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo que muito se
esforçou para compreender a condição de possibilidade da experiência humana e,
assim, do conhecimento. Em sua vasta obra escrita, alguns aspectos destacam-se,
como as chamadas “formas puras da intuição”: o espaço e o tempo. Segundo ele, o
conteúdo da experiência sensível (cores, cheiros, sons etc.) na qual estamos
mergulhados somente pode ser conhecido e adquire algum sentido quando é visto
com referência ao espaço e ao tempo. É impossível, diz Kant, conhecer os
objetos externos sem que estejam ordenados em uma forma espacial, assim como
nossa percepção interna desses mesmos objetos não é possível sem uma forma
temporal. Isto é o que se depreende da leitura de sua “Estética
Transcendental”.
É inegável que nossa maneira de pensar habitual transita no
âmbito destas formas puras da intuição. E mesmo ao pensar realidades que não
são experimentadas no espaço e no tempo por nós, como os átomos, os buracos
negros, o mundo espiritual ou as experiências de quase morte (EQM), nossa
tendência é partir das noções de espaço e tempo e simplesmente aplicar estas
formas da intuição até o infinito – imaginando-se o infinito como uma extensão
imensurável de espaço e, também, a eternidade como uma duração sem fim.
O modelo atômico de Rutherford-Bohr, por exemplo, do início
do século XX, lembrava um pequeno sistema planetário. Era como se, ao nos
tornarmos suficientemente minúsculos, pudéssemos viajar no “interior” de um
átomo, ideia que atualmente foi abandonada. Numerosas EQM são relatadas como
passagens “através de túneis”. E é difícil pensar-se num buraco negro sem
pensar em “coisas” sendo sugadas para “dentro” dele...
Mas até que ponto essas aproximações conceituais são
legítimas?
Limites das ideias de
tempo e espaço
Alguns conceitos da chamada física clássica estão presentes
nesta forma de ordenar a experiência: a independência completa da estrutura
espaço-temporal em relação à matéria, a independência completa entre o
observador e o objeto observado. Assim, referimo-nos ao átomo, à morte e aos
buracos negros como se fossem locais pelos quais o “eu” pudesse excursionar,
usando referências como “em cima”, “embaixo”, “dentro”, “fora”, entre outras
similares. Parece que sempre se pode usar a física de Newton nestas instâncias.
(Para Kant, a propósito, a Física newtoniana era o próprio paradigma de
ciência, e ela nos oferece justamente uma imagem do mundo que parte de nossas
experiências cotidianas e nelas se baseia para referir-se aos fatos.)
Não obstante, os avanços da física moderna e a teoria da
relatividade restrita de Einstein não são compatíveis com essa visão clássica/newtoniana.
E, de tal modo, que olhar para as coisas como dispostas num espaço
tridimensional, na duração do tempo, embora continue ocorrendo implacavelmente
em nossa maneira mais comum de lidar com os dados da experiência, torna-se
apenas isto: uma maneira de olhar, entre outras. Um jeito de interpretar os
fenômenos, um jeito semelhante à nossa experiência cotidiana, mas que não
retrata precisamente a realidade a que se pretende referir, pois não podemos
falar de átomos ou de partículas subatômicas como quem fala de bolinhas de
gude, nem da EQM ou do mundo espiritual como lugares com latitude e longitude
definidas. Enxergar as coisas assim faz parte de nossa experiência de
encarnados.
O ser nas reflexões
de Herminio C. Miranda
Herminio C. Miranda tece uma reflexão interessante sobre a
condição do espírito encarnado. Em Alquimia
da mente (Ed. Lachâtre), o autor propõe que há uma diferença entre alma
(espírito encarnado) e espírito, base para compreendermos que o fato de
estarmos encarnados, ligados a um cérebro, faz uma enorme diferença sobre nosso
modo de pensar, agir e perceber. Para facilitar, ele propõe considerarmos a alma
como personalidade (persona =
máscara) e o espírito como individualidade (“individuação do princípio
inteligente”, segundo Kardec). A alma se moveria no espaço mental que chamamos
de consciente, enquanto o espírito/individualidade ocupa a dimensão inconsciente.
Ele escreve: “Pareceu-me, ainda, que alma/personalidade/consciente liga seus
terminais no hemisfério cerebral esquerdo, a fim de negociar com a vida
material os encaixes de que necessita para operacionalizar seu aprendizado, ao
passo que o espírito/individualidade/inconsciente instala-se no hemisfério
direito, de onde não apenas monitora a alma, como mantém seus plugues psíquicos
ligados no cosmos.” Diz ele, então, que não gosta dos termos consciente e
inconsciente, pois o inconsciente é “muito mais consciente do que o consciente,
e muito mais abrangente, experimentado, vivido e informado do que o seu
tutelado, de vez que se enriquece a cada vida que passa acoplado a um corpo
físico através das vivências da alma”. A cada nova existência na
carne, este ser imortal tem que construir, ou montar, e programar uma nova
personalidade que opere na dimensão encarnada e, mesmo ao desencarnar, se a
entidade espiritual ainda não alcançou um estágio evolutivo satisfatório, pode
experimentar uma “exagerada fixação na sua existência como personalidade”.
Essas reflexões dão uma ideia de como pode ser difícil
passar de uma noção de tempo medido para uma dimensão sem tempo, uma vida não
localizada em nenhum espaço.
Com a palavra, O livro dos espíritos
O livro dos espíritos,
obra basilar da filosofia espírita, utiliza uma palavra para referir-se ao
estado de espírito desencarnado: erraticidade. Estar “em erraticidade”
significa não fixar-se em algum lugar determinado.
Os espíritos se associam por afinidades. E essa associação
se modifica, conforme modificamos nossos padrões de pensamento e conforme
evoluímos moralmente. Não há, portanto, localização absoluta de
punição ou de ventura para as almas que desencarnam.
A literatura espírita muitas vezes apresenta este “jeito de
olhar”, onde se busca falar de vivências no mundo espiritual, ou na mente, ou
nos estados de emancipação da alma (sono, sonambulismo, êxtase) como se fossem
localizados no espaço e durassem certo tempo. Ocorre, porém, que, citando Werner
Heisenberg (em A ordenação da realidade),
“nossa intuição habitual não é mais competente para esses domínios”. Apenas por
analogia, tais conceitos espaço-temporais podem ser usados.
Como é difícil conceber uma realidade fora do espaço-tempo,
o que fazemos, então, é usar o recurso da imaginação, atribuindo extensão,
forma, número e duração aos elementos de uma experiência fora dos padrões
cotidianos, a fim de que ela possa ser descrita em palavras e compreendida por
outros.
Talvez alguém se surpreenda pelo fato de que mesmo os
espíritos desencarnados podem manter-se vinculados às formas do espaço e do
tempo, referindo-se à sua própria condição como se estivessem habitando
determinado local que chamam de “céu” ou “inferno”. É que o desencarne não
significa descondicionamento de certas formas de pensar. Segundo O livro dos espíritos, questão 966:
“Muitíssimo incompleta é a vossa linguagem, para exprimir o que está fora de
vós. Teve-se então que recorrer a comparações e tomaste como realidade as
imagens e figuras que serviram para essas comparações. À medida, porém, que o
homem se instrui, melhor vai compreendendo o que a sua linguagem não pode
exprimir.”
Os espíritos errantes podem ter mais ou menos consciência de
sua condição, podendo ainda prender-se a certas noções de distância e tempo.
Mas nenhum espírito, ao abandonar a veste física, deve ir habitar obrigatoriamente
um lugar determinado e circunscrito, um “céu” de felicidade ou um “inferno” de
sofrimentos indizíveis. Nem mesmo é impositivo que ele vá para as chamadas
“colônias”, como Nosso Lar, descrito na obra homônima de André Luiz.
Ressalve-se que algumas construções, como cidades e
hospitais, são mantidos no mundo espiritual com o objetivo de acolher os seres
recém-chegados do plano terreno, a fim de recebê-los, oferecer cuidados e
orientação. Esta necessidade, porém, é passageira, e deixa de existir conforme
o espírito se integra em sua nova situação.
O que se pode dizer, acerca da pergunta-título, é que esta
questão provavelmente não faz nenhum sentido. A palavra “onde” pouco ou nada
nos pode revelar sobre a realidade espiritual que está além de nossas
percepções habituais e que não pode ser descrita em termos de extensão ou
duração. Ou poderíamos dizer que o mundo espiritual interpenetra o mundo
material, ele está por toda parte, sendo eventualmente acessado pelas
capacidades anímicas ou mediúnicas, e também durante o sono e outros momentos
de liberação parcial da alma em relação ao corpo. Podemos chamá-lo de Além?
Podemos, porém, não como um lugar distante, mas como um mundo fora das nossas percepções
comuns.
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* Este texto foi publicado no jornal Leitura Espírita, Edição 10, de fevereiro de 2013.
Que satisfação ler um texto muito bem escrito, de um tema instigante e poucas vezes abordado com a clareza que a filosofia instrumentaliza...
ResponderExcluirAlgumas pessoas têm dificuldade de expandir suas percepções para comportar a leitura e a análise de temas como a espiritualidade, então preferem relegá-los ao campo religioso-dogmático e lamentavelmente justificar seu desprezo... e por esses temas não caberem no campo científico-dogmático, restrito pelas percepções dos sentidos físicos densos, não recebem a devida abertura para romper os paradigmas, que por assim dizer, promovem o progresso pelo aprimoramento do conhecimento e sofisticação dos sentidos, refinando-os.
\o/
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