Por Rita Foelker (TEXTO INÉDITO)
Fato amplamente aceito pelos filósofos da ciência: na atividade científica, não existe observação sem teoria (Kuhn, 2000), ou seja, para se fazer o estudo de um conjunto de fatos é indispensável um ponto de partida numa teoria prévia ou num paradigma (em sentido kuhniano) que seja capaz de fornecer o quadro geral, apontar um método, valorizar certos dados em detrimento de outros e interpretar resultados. A escolha teórica é outro fato da pesquisa científica que já ocupou muitas páginas e livros de filosofia da ciência: de qual teoria vou partir para estudar tais fatos ou tentar solucionar tal problema?.
Hoje a maioria dos filósofos da ciência reconhece que os critérios aplicados no momento dessa escolha são extracientíficos, embora racionais. Eles não são extraídos do próprio método científico e nem se encaixam numa teoria científica, mas também não são aleatórios. E a própria história da ciência nos apresenta aqueles que foram repetidamente utilizados por cientistas. Alguns dos mais conhecidos são:
a) Falseabilidade, que é a capacidade de fazer afirmações que possam ser testadas e eventualmente falseadas perante os fatos observados (Popper, 1980);
b) Fertilidade, que consiste na capacidade de uma teoria de levar a novas descobertas, também conhecido como “poder heurístico” (Lakatos, 1979);
c) Simplicidade, segundo a qual entre duas teorias concorrentes para explicar um dado conjunto de fatos, considera-se que a mais simples deve ser a verdadeira (Kuhn, 2000);
d) Abrangência, a capacidade de resolver o maior número possível de problemas da pesquisa (Kuhn, 2000).
Os critérios apontados em A estrutura das revoluções científicas, em 1962, por Kuhn (2000) foram objeto de vasta controvérsia, o que o levou a escrever novamente sobre o assunto, dezessete anos mais tarde, num artigo para o livro A tensão essencial, de 1977. O autor então propôs, nesse novo texto, que a escolha teórica deveria ser compreendida em termos de valores epistêmicos. Eles deveriam ser considerados em lugar das “regras metodológicas” que operacionalizassem a “análise lógica de materiais empíricos” (Círculo de Viena, 1929), como desejava o positivismo lógico, pois trata-se de uma situação em que “não pode haver qualquer prova” (Kuhn, 1989).
Kuhn (1989) apontou então cinco características de uma boa teoria científica, que incluíam a fertilidade, a simplicidade e a abrangência (não só relativa aos problemas previstos pela própria teoria, mas indo além deles) citadas acima, e também a exatidão e a consistência:
e) Exatidão, segundo a qual a teoria tem consequências que precisam estar de acordo com as experimentações e observações existentes.
f) Consistência, que seria a ausência de contradição em relação a si própria e às teorias correntes que versem sobre o mesmo conjunto de fatos. (Entendemos que, embora seja um fator que influencie o cientista, a consistência externa pode ser questionada como valor epistêmico, visto que as demais teorias correntes podem estar erradas, tendo sido aceitas, talvez, exatamente por serem consistentes ou compatíveis umas com as outras. A consistência interna é claramente bem mais importante que a externa.)
Diferente das regras, os valores são “suscetíveis de divergência quanto à sua significação e aplicabilidade” (Barra, 2000). No entanto, eles são relevantes na medida em que, segundo Lacey (1997) observa, há “a referência à estrutura de valores hierarquicamente ordenada que se expressa na vida de uma pessoa. Tais estruturas de valores definem os mundos dos agentes: o que é significante para eles, o que é desejável e indesejável para eles, o que acham admirável e desprezível, que emoções exprimem, seus interesses e aspirações, o que consideram uma vida plena. Entender os outros requer acesso a suas estruturas de valor, entender seu ponto de vista mesmo sem compartilhá-lo [...] (Lacey, 1997, p.90-91).
Ciência segundo Allan Kardec e valores epistêmicos
Allan Kardec é um modelo de cientista para os espíritas, nas pesquisas e desenvolvimento da Ciência Espírita. Ele valorizava algumas características da teoria espírita, valorização que expressou em alguns lugares de suas obras. E também usava alguns critérios na análise dos fatos que estudava. Isso nos levou a perguntar: Quando ele se posicionou perante a teoria e os fatos espíritas, considerou alguns dos valores epistêmicos? E quanto à falseabilidade popperiana, ela é admitida por ele?
Falseabilidade. Bem, iniciando pela falseabilidade, uma das afirmações mais conhecidas do Codificador é que “o Espiritismo, avançando com o progresso, jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está em erro acerca de um ponto, ele se modificará nesse ponto; se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará” (Obras póstumas, p.470). Desse modo, as teses espíritas podem ser falseadas pelos fatos e este é um aspecto que garante a própria sobrevivência da Ciência Espírita.
Fertilidade. A fertilidade (ou poder heurístico) foi apontada pelo Codificador como elemento de confirmação, por exemplo, da teoria do perispírito. “O perispírito, como se vê, é o princípio de todas as manifestações. O conhecimento dele foi a chave da explicação de uma imensidade de fenômenos e permitiu que a ciência espírita desse largo passo, fazendo-a enveredar por nova senda, tirando-lhe todo o cunho de maravilhosa. Dos próprios Espíritos, porquanto notai bem que foram eles que nos ensinaram o caminho, tivemos a explicação da ação do Espírito sobre a matéria, do movimento dos corpos inertes, dos ruídos e das aparições” (O livro dos médiuns, item 146). A explicação da causa dos fenômenos das mesas girantes é outro exemplo da fertilidade que Kardec atribuiu à teoria espírita: “as mesas girantes representarão sempre o ponto de partida da Doutrina Espírita e, por essa razão, algumas explicações lhes devemos, tanto mais que, mostrando os fenômenos na sua maior simplicidade, o estudo das causas que os produzem ficará facilitado e, uma vez firmada, a teoria nos fornecerá a chave para a decifração dos efeitos mais complexos" (O livro dos médiuns, item 60).
Simplicidade. A simplicidade também foi um valor importante para Kardec, segundo o qual a explicação mais simples para um fato tende a ser a verdadeira. Isso se verifica em vários trechos de seus escritos, entre os quais destacamos o do item 108 de O livro dos médiuns, relativo às causas das manifestações físicas espontâneas. Ele se referia à confusão com os casos de manchas ou pontos opacos do próprio humor aquoso, que se movem e causam a impressão de que se está enxergando um fenômeno externo: “Enquanto não se provar que uma imagem tem movimento próprio, espontâneo e inteligente, ninguém poderá enxergar no fato de que tratamos mais do que um simples fenômeno ótico ou fisiológico”. Significa então que, se a explicação mais simples são as manchas, esta é provavelmente a tese correta e não precisamos recorrer à intervenção espiritual.
A independência do espírito em relação à matéria constituiu-se na explicação mais simples para a ocorrência de muitos fenômenos, como a clarividência e a segunda vista. Até hoje, elas são mais simples que certas tentativas da ciência materialista de explicar os mesmos fenômenos. Também as recordações de vidas passadas, com ampla comprovação de identidade na vida anterior em muitos casos, têm na reencarnação sua explicação mais simples.
Abrangência e exatidão. Quanto à abrangência e exatidão, ambas aparecem nas palavras do próprio Codificador, transcritas na biografia de Henri Sausse: “Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito, o método da experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão” (SAUSSE, [s.d.], p.8).
Também o item 32 de O livro dos médiuns se refere à sua capacidade de abranger “tanto o homem físico quanto o homem moral”. Referindo-se à vantagem dessa abrangência perante a ciência médica da época, no item XIX da Introdução a O Evangelho segundo o Espiritismo, lê-se que “Se os médicos são malsucedidos, tratando da maior parte das moléstias, é que tratam do corpo, sem tratarem da alma. Ora, não se achando o todo em bom estado, impossível é que uma parte dele passe bem. O Espiritismo fornece a chave das relações existentes entre a alma e o corpo e prova que um reage incessantemente sobre o outro. Abre, assim, nova senda para a Ciência. Com o lhe mostrar a verdadeira causa de certas afecções, faculta-lhe os meios de as combater. Quando a Ciência levar em conta a ação do elemento espiritual na economia, menos frequentes serão os seus maus êxitos.”
Onde a abrangência da teoria espírita perante os demais sistemas, na visão de Kardec, mostra-se mais clara é no capítulo IV da Primeira Parte de O livro dos médiuns (“Dos sistemas”). Ele trata das teorias que surgiram para explicar os fenômenos mediúnicos e das limitações que carregavam, das quais não padecia a teoria espírita.
Consistência. A consistência perante si mesma é uma constante na teoria espírita, mas o mesmo não se pode dizer dela com respeito às demais teorias que versam sobre os mesmos fatos. À época, surgiram muitos sistemas concorrentes, e hoje não é diferente. Contudo, como dissemos, entendemos que a consistência externa pode ser um critério contestável.
Conforme observamos, Allan Kardec compreendia a importância dos valores epistêmicos e da falseabilidade como atributos de uma boa teoria. Isso nos dá uma dimensão da sua qualidade enquanto pesquisador da Ciência Espírita, mesmo numa época em que eles nem eram cogitados e que a filosofia da ciência ainda estava nascendo.
A teoria espírita, como vimos, traz em seu bojo esses atributos. Como concluímos das observações de Lacey (1997), eles constituíam os pontos significativos para o Codificador, eles nos revelam sua racionalidade, seu modo de pensar que se manifestam no seu próprio viver e seu estilo de pensar e fazer ciência, o qual está de acordo com os melhores critérios racionais apontados pelos filósofos da ciência contemporâneos.
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Referências:
BARRA, E.S.O. Valores epistêmicos no naturalismo normativo de Philip Kitcher. Principia. V. 4, Nº 1. (2000), p. 1-26.
KARDEC, A. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1996.
______. O livro dos médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 1996.
______. Obras póstumas. (PDF) Rio de Janeiro: FEB, 2005.
KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2000.
______. Objetividade, juízo de valor e escolha teórica. In: A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1989.
LACEY, H. Interpretação e teoria nas ciências naturais e nas ciências humanas: comentários a respeito de Kuhn e Taylor. Trans/Form/Ação. Nº20 (1997). p.87-106.
LAKATOS, I. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: LAKATOS, I; MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix/Ed.USP, 1979.
POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações (O Progresso do Conhecimento Científico). In: Conjecturas e Refutações. Brasília: UnB, 1980.
SAUSSE, Henri. Biografia de Allan Kardec. (PDF)
THE SCIENTIFIC conception of the world: the Vienna Circle. (Tradução para o inglês
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Imagem: Foto de um experimento com a médium Eusápia Paladino, no início do século XX.
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