domingo, 30 de outubro de 2011

A grande lacuna que a ciência espírita vem preencher

Primeiro, era demoníaco. Depois, patológico. Quando é que as experiências mediúnicas e anímicas receberão o tipo de abordagem que realmente merecem?

Texto inédito

Por Rita Foelker

Os séculos XVI e XVII foram um período marcante da perseguição às feiticeiras e hereges, na Europa. Exatamente no limiar do século XVII, no ano de 1600, concluiu-se um dos mais famosos processos por heresia, aquele que resultou na morte de Giordano Bruno (1548-1600) na fogueira (imagem ao lado).

Os processos do Santo Ofício muitas vezes atingiram pessoas dotadas de mediunidade ostensiva ou, então, pessoas que tinham faculdades anímicas evidentes, como foi o caso dos benandanti, na Itália. Representantes de um culto não-cristão, ligado a certas tradições agrárias, os “andarilhos do bem” compartilhavam uma capacidade hoje bem compreendida, graças à ciência espírita: eles saíam conscientemente do corpo, durante à noite, e afirmavam combater os feiticeiros em favor de uma boa colheita.

A interpretação do fenômeno pela cultura dominante no curso da história – representada, primeiro pela igreja, depois pela ciência –, porém, revela-nos um importante papel da ciência espírita em nosso tempo, que esperamos apresentar neste texto, após algumas considerações históricas.


Processos inquisitoriais na Europa: a demonização da mediunidade e dos fenômenos anímicos


Carlo Ginzburg, historiador italiano e autor de Os andarilhos do bem (Ed. Companhia das Letras), busca as raízes culturais e antropológicas do culto dos benandanti, que tinha similares em outros lugares, como a Dalmácia. Mas parece claro que se trata da assimilação de um fato, a independência do espírito em relação à matéria, que foi vivenciado por muitas pessoas e interpretado em conjunto com algumas crenças e superstições do período. Não é objeto deste artigo, avaliar o quanto dessas descrições de viagens fora do corpo era real e quanto era fruto de assimilação cultural, mas suas raízes na realidade do fenômeno são, para nós, inquestionáveis.

(O livro fala ainda de homens e mulheres que eram investigados por se dizer que elas viam os mortos e traziam recados deles.)

Ginzburg apresenta em sua pesquisa vários interrogatórios aos acusados de heresia. E o autor observa como, no decorrer do tempo, os interrogatórios transfundiram o que era uma espécie de “culto pagão da fertilidade” em um conjunto de práticas incitadas pelo Diabo. A indução por meio de perguntas dirigidas e a tortura acabaram fazendo com que muitos portadores dessas faculdades anímicas e mediúnicas fossem vistos como participantes de sabás de feiticeiras e profanadores confessos dos sacramentos católicos, numa doutrina que posteriormente veio a integrar tratados e sermões católicos em torno do tema. “Seria mais exato falar de superposição do esquema inquisitorial já mencionado a um estrato preexistente de superstições genéricas” que “realizou-se de forma particularmente dramática (...), modelando as confissões dos acusados” (GINZBURG, 2010[1966], p.10). Tudo isto está documentado e acessível ao leitor de língua portuguesa, na obra referida.

Imre Lakatos, filósofo da ciência, (s.d., p.12) escreve: “Se passarmos os olhos pela vasta literatura do século XVII sobre feitiçaria, encontramo-la repleta de relatos de observações cuidadosas e testemunhos prestados sob juramento – até mesmo de experiências. Glanvill, o filósofo oficial da primitiva Royal Society(1), [que tinha finalidades científicas,] considerava a feitiçaria o paradigma do raciocínio experimental.”

Ora: ciência compõe-se de conhecimento do qual temos evidências baseadas na observação e na experiência. Quer se considere que os dados verificam teorias, quer se considere que os dados as falseiam, seu papel é fundamental na atividade científica. Pela relevância insubstituível dos dados experimentais, entende-se comumente que não se pode fazer ciência sobre temas que não apresentem dados à observação. É o caso dos temas clássicos da Metafísica: Deus, a imortalidade e a liberdade.

Além disso, a ciência é um conhecimento que conta com credibilidade e respeitabilidade para fazer afirmações que supostamente se distinguem de opiniões, crenças, ideologia e superstições. Ou que, pelo menos, deveriam distinguir-se.

E realmente chegaria o momento da ciência se pronunciar sobre os fatos ocorridos com os benandanti e outros, similares.

Em Os andarilhos do bem, mais adiante, lemos que “o progresso da medicina levou sempre, cada vez mais, a ver nas bruxas e nos endemoniados nada mais que mulheres fracas, vítimas de alucinações, e indivíduos melancólicos” (GINZBURG, p.163).

E é assim que vai se constituindo a partir dali e gradativamente um segundo estilo de interpretação dos fenômenos anímicos, caracterizada pela patologização desses estados, no decorrer do desenvolvimento da ciência médica e psiquiátrica.


Ciência tradicional: a patologização da mediunidade e dos fenômenos anímicos

Lakatos (s.d.) alertava para uma contaminação do pensamento por estados psicológicos (preconceitos, crenças, superstições, ideologias etc.) que tinha como consequência o seguinte: os procedimentos usados para identificar bruxas serem considerados legítimos, válidos, por serem criteriosos e experimentais. “Ora, o conhecimento mais relevante do século XVII, quando nasceu a ciência, dizia respeito a Deus, ao Diabo, ao céu e ao inferno” (LAKATOS, [s.d.], p.13). Era um conhecimento teológico, cuja má interpretação conduzia à danação eterna.

Na Idade Moderna, o conhecimento científico adquiriu prestígio crescente.

Os cientistas buscaram tornar suas teorias respeitáveis, a fim de serem consideradas conhecimento genuíno. Os critérios teológicos, contudo, não mais serviam, um cientista digno deste nome precisava escapar da sombra da superstição e da teologia, e o caminho para isso era comprovar suas teses baseando-se em experiências e observações (LAKATOS, [s.d.]). Assim, no avanço das ciências, as teorias não comprovadas pelos fatos eram reduzidas a “especulação filosófica” ou acusadas de serem “heresias científicas”.

Passou-se então a interpretar as ocorrências mediúnicas ou anímicas como indícios de estados patológicos. Marcel Mauss adere a esta interpretação ao abordar a época em questão, escrevendo “as mulheres são especialmente sujeitas à histeria; suas crises nervosas fazem-nas então parecer possuídas de poderes sobreumanos” (MAUSS, 2003, p.65). As mesmas ocorrências que, nos tempos atuais, são consideradas entre nós “casos hospitalares ou de homens rústicos” (id., p.365).

A histeria foi analisada por Freud em um artigo de 1895 (KENNY, 1999) e influenciou as ideias posteriores sobre saúde e doença mental. “O próprio conceito de saúde mental, na sua forma moderna, data do tempo em que Freud e os seus colegas começaram a tratar os pacientes histéricos como inválidos genuínos (...)” (KENNY, 1999, p.434).

Lembramos que a contaminação por alguns estados psicológicos (preconceitos, crenças e ideologias) continuou existindo. Só que agora eram outros preconceitos, outras crenças e outras ideologias, nas quais não nos deteremos neste momento.

Verificamos enfim que, quando o conhecimento mais relevante era o teológico, os fenômenos mediúnicos e anímicos foram forçados a se encaixar num molde de heresia e influência demoníaca. Quando o conhecimento mais relevante passou a ser o científico, os fenômenos mediúnicos e anímicos foram forçados a se encaixar num molde de patologia e loucura. Mas o que ressalta disso tudo é que continuamos tendo problemas para lidar com tais fenômenos, dentro destes dois campos. Porque essas leituras, a teológica e a da ciência acadêmica, são parciais: em geral dão conta de apenas uma parte de tudo o que tais fenômenos envolvem, entendendo que o restante, ou não existe, ou não merece atenção. Além disso, os fatos são comumente interpretados por religiosos e cientistas que trazem dentro de si uma carga teórica e de preconceitos, que as impede de compreender o tipo de ocorrência que presenciam e de bem levar a cabo a observação, a interpretação e as conclusões a respeito disso.

Esta é a grande lacuna que a ciência espírita tem a preencher, nos dias atuais: compreender as pessoas que vivenciam estes fenômenos, ajudá-las a compreenderem o que com elas ocorre e a decidirem sobre como irão lidar com esta fenomenologia no seu cotidiano.

Vejamos: A histeria foi considerada um tipo de manifestação corporal de um problema psíquico, pois não se identificavam causas físicas para ele. Bem, no caso dos fenômenos da alçada do Espiritismo, não há causas físicas, e os sintomas físicos são, em geral, parte do conjunto dos efeitos de causas espirituais.

A psiquiatria convencional e a antropologia costumam atribuir rótulos às crises psicoespirituais, chamando-as de esquizofrenia, psicose limítrofe, epilepsia, e até de histeria grave e “defesa culturalmente construída” (GROF, 2006). Mas não são poucos os relatos de médiuns que foram tratados como casos psiquiátricos, sem alívio, sem melhoras, até que a estratégia correta foi adotada e se passou a entendê-los como pessoas que vivenciavam episódios mediúnicos ou anímicos e receberam orientação em conformidade com a teoria e prática espíritas.

A psicologia transpessoal trilhou boa parte de um caminho para a compreensão das questões relacionadas ao lado espiritual dos chamados transtornos psicológicos e mentais. Contudo, é inegável que a base teórica mais completa e consistente para tratar estas questões se encontra na Filosofia e na Ciência Espíritas.

O lugar da Ciência Espírita entre as demais ciências

Desde que o Espiritismo apresenta, como princípios doutrinários básicos, Deus como causa primeira de tudo o que existe, o livre-arbítrio nas ações humanas e a sobrevivência do Espírito à morte do corpo, em geral não se aceita nos meios acadêmicos que possa haver uma Ciência Espírita, pois seria um contrassenso querer fazer ciência em torno de questões que não são e nem podem ser científicas, mas sempre foram metafísicas – Deus, liberdade e imortalidade.

A ciência espírita, contudo, não trata de metafísica. Ela tem, como toda ciência, uma série de pressupostos ontológicos, i. e., entidades que ela admite existirem: Deus, Espírito e matéria. Mas aquilo de que ela trata são dados experimentais e observações que têm em comum o fato de pertencerem ao campo das relações entre o mundo material e o mundo espiritual. São fatos observáveis e documentados fartamente.

Allan Kardec, falando aos espíritas de Bruxelas e Antuérpia, conforme texto publicado na Revista espírita de Dezembro de 1864, afirmou: “o Espiritismo não é uma concepção individual, um produto da imaginação; não é uma teoria, um sistema inventado para a necessidade de uma causa. Tem sua fonte nos fatos da natureza mesma, em fatos positivos, que se produzem aos nossos olhos e a cada instante, mas cuja origem não se suspeitava. É, pois, resultado da observação, numa palavra, uma ciência: a ciência das relações entre os mundos visível e invisível; ciência ainda imperfeita, mas que diariamente se completa por novos estudos e que, tende certeza, tomará posição ao lado das ciências positivas (2).”

Prossegue o Codificador: “o Espiritismo vem mostrar uma nova lei, uma nova força da natureza: a que reside na ação do Espírito sobre a matéria, lei tão universal quanto a da gravitação e da eletricidade”.

A regularidade nas observações, a consistência da teoria espírita é indicativa de que ela é tão segura e confiável, de que seu objeto é tão apto para a pesquisa, quanto os das demais ciências. E que, a partir do momento em que ela for admitida entre elas, estenderemos muito o campo da compreensão humana dos fenômenos que envolvem pessoas e espíritos.

Referências:

GINZBURG, C. Os andarilhos do bem. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GROF, S. The ultimate journey: consciousness and the mystery of death. Santa Cruz (Califórnia): Maps, 2006

KARDEC, A. Revista Espírita. Ano 7, Nº 11. Dez 1864. Disponível em < http://www.febnet.org.br/ba/file/Down%20Livros/Revista%20Esp%C3%ADrita/Revista1864.pdf> Acesso em 29 Out 2011

KENNY, A. História concisa da filosofia ocidental. Tradução: Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figueiredo, Pedro Santos e Rui Cabral. Lisboa: Temas e debates, 1999.

LAKATOS, I. História da ciência e suas reconstruções racionais. Lisboa: Edições 70, s.d.

MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.



1. A Royal Society de Londres teve início em 1640, com alguns membros, e sua fundação oficial data de 1660. Reuniu eminentes cientistas de várias épocas e continua em plena atividade. Saiba mais em http://royalsociety.org.

2. Em janeiro de 1858, Allan Kardec afirmou na introdução ao primeiro número da Revista espírita, observamos a classificação do Espiritismo como uma "ciência filosófica". Algo que na prática e conforme definições mais recentes de ciência, equivaleria a uma filosofia. Refere-se a uma divisão moderna das ciências em positivas (experimentais) e filosóficas (racionais), as quais "demonstram revelando razões intrínsecas" (ver aqui). No entanto, em dezembro de 1864 havia Kardec transformado seu modo de pensar, afirmando que seu lugar é entre as ciências positivas ou experimentais. Esta mudança tem consequências, que deixamos para analisar num artigo futuro.

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Imagens: No alto, estátua de Giordano Bruno; ao centro, capa de uma edição brasileira do livro de Carlo Ginzburg; embaixo, fotos clássicas de mulheres em episódios de histeria.

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