sexta-feira, 9 de julho de 2010

Caçadores de mitos e fraudes*

Tanto o ceticismo ferrenho quanto a crença cega são prejudiciais para a compreensão de qualquer conceito

Por Rita Foelker

Os caçadores de mitos e fraudes têm conquistado espaço na TV e na internet.
Há alguns anos um dos mais famosos, o mágico e autor de livros James Randi, lançou um desafio a qualquer pessoa que se considerasse médium ou paranormal, para que se submetesse a testes em condições determinadas por ele. Caso a pessoa conseguisse realizar seu fenômeno em tais condições, receberia U$1.000.000.
O NatGeo, canal de TV por assinatura, apresentou certo tempo atrás uma série intitulada “Verdade ou Mito?”. O site do canal anunciava o programa desta forma: “Verdade ou Mito? vai examinar algumas de nossas crenças mais apreciadas e descabidas. Através da ciência e do velho bom senso, colocaremos essas fábulas à prova até, por fim, derrubá-las.”
As pessoas que duvidam de tudo que não possa ser provado de forma evidente são chamadas de céticas. O ceticismo pode ser uma boa estratégia contra a credulidade excessiva: duvidar daquilo que ainda não está provado para não cair nas armadilhas da ilusão. Mas, às vezes, essa dúvida se transforma numa cruzada apaixonada para demolir crenças e teorias, deixando de ser racional para tornar-se tão dogmática quanto a fé cega. E alguns de seus argumentos podem ser bastante frágeis.
O Ceticismo é um movimento antigo na história da Filosofia e Kardec nos ensina como agir perante os céticos em relação aos fenômenos espíritas.

O Ceticismo na Filosofia e na Ciência

O termo “ceticismo” vem do grego "skêpsis" e significa indagação, exame.
O Ceticismo filosófico é uma atitude do filósofo ou de qualquer pessoa que escolhe examinar seus e conceitos, idéias, percepções e crenças de uma forma crítica, para ver se são absolutamente verdadeiros.
Francisco Saiz, em seu artigo Ceticismo científico x ceticismo dogmático, afirma que “o ceticismo, quando utilizado de forma inteligente e livre de dogmas, permite que não nos contentemos com respostas mal dadas. Nos impele para o sincero questionamento e nos direciona para as descobertas”.
A primeira escola cética foi fundada por Pirro, no século IV a. C.. Para os seus seguidores, examinar, descobrir e concluir não é o mais importante. Sua principal característica é considerar a indagação como um fim em si mesmo.
Inspirado no ceticismo grego e em oposição ao pensamento medieval, o ceticismo ressurge na Renascença, caracterizado pelo individualismo, o pragmatismo e o racionalismo deste movimento. Seu alvo preferido é a religião, que ataca violentamente.
Seu maior representante foi o francês Miguel de Montaigne (1533-1592). Para ele, tudo é incerto: os dados da razão podem enganar, os sentidos não são confiáveis, e só o “eu”, como centro das mais variadas experiências humanas, é digno do seu interesse. Por isso, o individualismo do Renascimento perpassa sua obra e suas idéias.
Ainda na Idade Moderna surge outra importante figura na história do ceticismo, o escocês David Hume (1711-1776).
Seu ponto de partida é que muitas de nossas crenças não possuem uma justificação racional. O que ele pretendia realmente, contudo, não era destruir toda e qualquer crença ou idéia, mas questionar a eficácia da capacidade humana para conhecer o mundo objetivamente.
Tomemos como exemplo o princípio da causalidade que diz que todo o efeito tem uma causa e que, nas mesmas circunstâncias, a mesma causa produz sempre os mesmos efeitos. (É uma versão do princípio espírita da causa e efeito.) O princípio da causalidade, segundo Hume, não passa de uma associação mental entre dois fatos que interpretamos, um como causa, o outro como efeito. Trata-se de uma “ilusão psicológica” ou “hábito mental”.
O Ceticismo científico, por sua vez, relaciona-se ao filosófico. É uma postura científica e prática, em que alguém questiona a veracidade de uma alegação, e procura provar se é verdadeira ou falsa. Para isso, usa o método científico, entendido como um conjunto de normas básicas para validar uma experiência.
Carl Sagan (1935-1996), autor da frase “Devemos ter a mente aberta, mas não tanto que o cérebro caia fora”, é um dos expoentes contemporâneos do ceticismo científico.

Ceticismo na TV

Iniciamos falando sobre programas de TV que se propõem a desvendar as verdadeiras causas de alguns fenômenos tidos como “paranormais” ou “sobrenaturais”.
“Verdade ou Mito?” abordou assuntos como fantasmas, o Pé Grande, os círculos em plantações, os discos voadores, força da mente e a mediunidade.
O roteiro dos programas foi sempre semelhante: havia uma descrição dos fatos e da origem das crenças em torno deles, com testemunhos de algumas pessoas, e então procurava-se estudiosos e cientistas (ou até aventureiros, como no caso dos círculos em plantações) que mostrassem que aquele fato poderia ser reproduzido por meios materiais e sem qualquer intervenção oculta.
Para os idealizadores de “Verdade ou Mito?”, a intenção de derrubar mitos e fraudes parecia ter sido realizada quando, por exemplo, um caça-fantasmas ao investigar uma casa considerada assombrada, disse perceber outros espíritos mas não mencionou o do jovem que se sabia ter desencarnado ali, ou quando as gravações de vozes obtidas no local não eram nítidas o suficiente para se entender com clareza, ou quando as fotografias tiradas pudessem ser reproduzidas em outras condições.
O programa falhou ao ser superficial, ao oferecer como prova “demolidora” apenas uma alternativa, ou fato indicador de fraude ou de causas materiais para a certa ocorrência, mas sem pesquisar outras provas de que tais fenômenos existem e podem acontecer em circunstâncias diferentes. No caso da gravação de vozes inaudíveis, por exemplo, mostra-se uma gravação ruim para demolir toda uma concepção de que os espíritos podem deixar mensagens em fitas magnéticas. Mas a pesquisadores sérios como Sônia Rinaldi, que tem anos e anos de experiências e de casos comprovados, não se oferece a oportunidade de falar.
Como atração televisiva, “Verdade ou Mito?” poderia ter alcançado maior êxito e conseguiria efetivamente separar as verdades dos mitos, se tivesse mais cautela ao analisar o material de que dispõe e melhores critérios científicos ao produzir suas provas.
As fotos e filmes de espíritos e fantasmas recebem o mesmo tratamento. Coloca-se alguém apresentando um truque para obter uma imagem fantasma, que é reproduzido e explicado detalhadamente. Por si só, porém, a possibilidade de haver truques não invalida a possibilidade de se obter tais fotos e filmes sem truques.

Kardec perante os céticos

Se considerarmos o cético uma pessoa que tem uma posição crítica em determinada situação, geralmente por empregar princípios do pensamento crítico e métodos científicos, veremos que ele muito contribui para a investigação científica e filosófica. Devemos salientar que uma dose de ceticismo é benéfica e saudável e que os céticos nos prestam um grande serviço ao desmascararem certas lendas e pseudoteorias. O excesso de credulidade pode ser tão prejudicial quanto a incredulidade absoluta, e não se constitui num caminho seguro para chegar à verdade. Contudo, os céticos, ou os que assim se autodenominam, também podem se equivocar e o fazem, em geral, por assumirem posições subjetivas arbitrárias.
Um dos princípios utilizados pelos céticos para defender suas posições se chama Princípio da Economia ou Navalha de Ockham, creditado a William de Ockham (1280?-1349). De acordo com este princípio, "não se deve multiplicar entidades desnecessariamente", quer dizer, entre duas explicações para um fato, devemos preferir a mais simples, a mais econômica, a que necessite de menos elementos. Kardec, o bom-senso encarnado, disse o mesmo ao recomendar que se excluíssem todas as causas materiais antes de atribuir uma causa espiritual ou mediúnica a um determinado evento.
Na obra “O que é o Espiritismo?”, Allan Kardec dialoga com um padre e um cético e sua argumentação convincente continua valendo nos dias atuais. Vejamos algumas de suas falas que responderiam aos incrédulos da atualidade:

“Uma coisa é estar convencido e outra é estar disposto a convencer-se; é aos desta última classe que me dirijo, e não aos que julgam humilhação vir escutar o que eles chamam de ilusões. Com estes não me ocupo absolutamente.”
A atitude do cientista sincero, assim como a da ciência, não pode ser preconceituosa. Como confiar numa ciência que joga com cartas marcadas e que rejeita aprioristicamente uma certa gama de resultados por considerá-los impossíveis?

“A convicção só se adquire com o tempo, por meio de uma série de observações feitas com cuidado todo particular.”
O que se observa em alguns céticos é a precipitação em contra-argumentar, o que resulta numa contra-argumentação superficial e falha, que só poderia convencer pessoas sem nenhum ou com pouquíssimo conhecimento dos postulados espíritas.

“Os fenômenos espíritas diferem essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tempo que se descobre provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com espírito prevenido.”
A falta de cuidado na observação e a falta de conhecimentos das peculiaridades da fenomenologia espírita fazem com que os estudiosos queiram aplicar métodos da ciência material para questões de natureza espiritual. Assim, não é de estranhar que nada encontrem ou que não se convençam com a pobreza dos resultados que obtém.

“As provas abundam para o observador assíduo e refletido. Uma palavra, um fato aparentemente insignificante, é para ele um raio de luz, uma confirmação; ao passo que tais fatos não têm sentido para quem os observa superficialmente ou por simples curiosidade...”
O observador meticuloso, que se aprofundasse nas inúmeras questões envolvidas no processo das comunicações mediúnicas e dos fenômenos anímicos que o Espiritismo estuda e comprova, saberia onde encontrar os verdadeiros elementos de convicção, se os buscasse com sincero desejo de aprender.

“Por ser uma coisa suscetível de imitação, segue-se que ela não exista?”
Será que pelo fato de existirem fotos e filmes forjados, devemos pensar que não há fotos e filmes legítimos? Será que pelo fato de haver pessoas que simulam a mediunidade, não há médiuns de verdade? Este é um raciocínio infantil, como aquele que dissesse que, como existem pedras de zircônia que brilham como diamantes, então os diamantes não existem...
Não se pode derrubar um conceito como a mediunidade baseado na possibilidade dos fenômenos mediúnicos serem imitados, mas somente se provarmos a impossibilidade lógica e científica da existência e da comunicabilidade dos espíritos desencarnados.

Kardec, em O que é o Espiritismo?, também nos deixa a seguinte recomendação:

“A quem deseja instruir-se, direi: ‘Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental como se faz um de Física ou de Química atento que nunca se é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências desses agentes fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as nossas previsões. (...)
Instruí-vos primeiramente pela teoria, lede e meditai sobre as obras que tratam dessa ciência; nelas aprendereis os princípios, encontrareis a descrição de todos os fenômenos, compreendereis a possibilidade deles pelas explicação que elas vos darão, e, pela narrativa de grande número de fatos espontâneos de que pudestes ser testemunha sem os compreender, mas que vos voltarão à memória, vós vos fortificareis contra todas as dificuldades que possam surgir e formareis, desse modo, uma primeira convicção moral.
Então, quando se vos apresentar a ocasião de observar ou operar pessoalmente, compreendereis, qualquer que seja a ordem em que os fatos se mostrem, porque nada vereis de estranho.’”


Segundo o educador Jiddu Krishnamurti, citado por Pedro J. Bondaczuk em seu artigo Sabedoria e Ceticismo, "ceticismo não é cinismo ou negação sistemática, é o estado da mente que não concorda depressa, que não aceita logo ou toma as coisas como resolvidas. A mente que aceita logo não está buscando a sabedoria, mas simplesmente refúgio".


Incrédulos por sistema

“Eu faço grande distinção entre o incrédulo por ignorância e o incrédulo por sistema; quando descubro alguém com disposições favoráveis, nada me custa esclarecê-lo; há, porém, pessoas em quem a vontade de instruir-se não é senão aparente; com estas perde-se o tempo; porque se elas não encontram logo o que parecem buscar, e que talvez as incomodasse, se aparecesse, o pouco que vêem não é suficiente para destruir-lhes as prevenções; julgam mal os resultados obtidos e os transformam em objetos de zombaria, pelo que não há utilidade em lhos oferecer.” (Allan Kardec em O que é o Espiritismo?)


Para saber mais:

- O que é o Espiritismo?, de Allan Kardec.
- Ceticismo científico x ceticismo dogmático, artigo de Francisco Saiz, disponível em http://scm2000.sites.uol.com.br/ceticismodogmatico.html;
- Sabedoria e ceticismo, artigo de Pedro J. Bondaczuk, disponível em http://www.planetanews.com/news/2005/10340

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* Este artigo foi publicado originalmente na Edição 29 de Revista Universo Espírita e revisado para esta postagem.

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