domingo, 8 de agosto de 2010

Ciência e a religião, uma aliança possível*


Por Rita Foelker

Quando Kardec propôs a aliança entre a ciência e a religião, nas obras da Codificação Espírita e, especificamente, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, o mundo vivia sob a influência das idéias do Iluminismo francês, que promovia o ateísmo a baluarte da libertação da Humanidade do obscurantismo religioso, e a ciência passava as ser reconhecida como o grande caminho de emancipação e conhecimento. Isto ocorreu, em parte, devido aos grandes avanços e descobertas da época, que geraram grande entusiasmo nas mentes ilustradas.
Até a Idade Média, no Ocidente, a Igreja legislava sobre questões morais e científicas. Contudo, desde o nascimento daquilo que chamamos de “ciência moderna”, por volta de 1600, iniciou-se uma separação e um distanciamento. A ciência ensaiava sua independência da religião como “esfera cultural de valor” autônoma, expressão cunhada por Max Weber e utilizada contemporaneamente por Jürgen Habermas (Ver quadro abaixo).
Para afirmar-se, a ciência escolheu o caminho da negação da religião como fonte legítima de conhecimento. Este movimento, iniciado pelos modernos e incrementado pelos iluministas, ganha corpo com o positivismo de Auguste Comte (1798-1857), cuja doutrina procura apresentar o pensamento religioso (que ele denomina “teológico”) como uma mera etapa da infância do ser humano individual e da Humanidade em geral. Segundo este pensador e sua “lei dos três estados”, o espírito, em seu esforço para explicar o universo, passa necessariamente por três estados sucessivos:

a) o estado teológico, onde procura explicar os fatos por meio da ação de divindades com vontades semelhantes à nossa, etapa em que o pensamento evolui do fetichismo ao politeísmo e, deste, ao monoteísmo;
b) o estado metafísico, onde os deuses são substituídos princípios abstratos como causa, substância, essência, alma, etc.;
c) o estado positivo, estágio final da evolução em que o espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aos últimos "porquês" das coisas, para estudar unicamente os fatos que se oferecem à percepção dos sentidos pois, quando atinge a maturidade intelectual, segundo Comte, passa ele a aceitar apenas o conhecimento científico de base empirista em seus raciocínios e reflexões, rejeitando os demais conceitos de sua fase teológica e metafísica, como um adulto que considera menos importantes as ideias que nutria quando era criança e jovem.

O distanciamento entre as esferas da ciência e da religião, permitiu à ciência um grande desenvolvimento mas, ao mesmo tempo, muitos cientistas assumiram atitudes hostis acerca das idéias religiosas.
Como elas se relacionam, atualmente?

Possíveis modos de relação entre ciência e religião

O pensador Ken Wilber, em sua obra A União da Alma e dos Sentidos, classifica os cinco modos de se estabelecer uma relação entre ciência e religião que, segundo ele, são possíveis na atualidade.
No primeiro deles, a ciência pura e simplesmente nega a religião. Esta atitude é representada hoje em dia, entre outros, por Richard Dawkins, autor de Deus – um Delírio, que considera a religião um resquício de nossas superstições advindo do passado e destinado à extinção, conforme a mentalidade científica conquista espaço no mundo.
No segundo, a contrapartida: a religião nega a ciência. Os defensores dessa posição promovem, por exemplo, uma adesão à interpretação literal da Bíblia e dos textos religiosos, que representam a única verdade para o homem e da qual a ciência mais se distancia, quanto mais a refuta.
Não há, portanto, um acordo possível entre ciência e religião, de acordo com estes dois modos referidos acima.
Num terceiro modo, temos a religião e a ciência tratando de reinos diferentes, o que possibilita uma coexistência pacífica entre elas. A religião trataria do espírito; a ciência, da matéria. Uma de suas versões é a MNI (sigla para “Magistérios Não Interferentes”), de Stephen Jay Gould, autor de Pilares do Tempo – Ciência e Religião na Plenitude da Vida. Segundo esta versão, a ciência e religião, embora coexistam pacificamente e até precisem uma da outra, jamais poderiam ser integradas, visto que seus temas de estudo e reflexão não coincidem.
O quarto modo afirma que a própria ciência apresenta argumentos favoráveis à existência de realidades espirituais, pois muitos fatos estudados no seu âmbito, no limite das observações, apontam para realidades extrafísicas. Segundo esta visão, por exemplo, a teoria do big-bang precisa de um Criador para ser explicada, a evolução segue em direção a uma meta (télos) que denota uma ação inteligente dirigindo a vida etc.
O quinto modo baseia-se na crença de que a ciência não dá conhecimento do mundo, mas que é apenas uma interpretação dele, valendo tanto quanto as interpretações da religião, da arte, da literatura e dos mitos. É uma visão pluralista comum no mundo acadêmico, a qual pode conduzir a um relativismo cultural que considera todas as interpretações como plausíveis e aceitáveis, mas não estabelece qualquer tipo de hierarquia ou critério de preferência entre elas.

A concepção espírita

O texto breve, mas altamente esclarecedor de Allan Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo (Cap. 1, item 8) nos oferece uma alternativa a estes pontos de vista que é, ao mesmo tempo, simples e integrativa.
Primeiro, é preciso entender que as palavras “Ciência” e “Religião” são utilizadas pelo Codificador para falar de instituições humanas e, não, em sentido abstrato. Ou seja, sob este aspecto, a ciência e a religião tratam de domínios diferentes: à Religião cabe o papel social de tratar do discurso moral (e não espiritual, como propunha o terceiro modo da classificação de por Wilber), enquanto que à Ciência compete desvendar as leis do mundo material.
Contudo, por terem, ambas, uma origem única no Criador de Todas as Coisas, e derivando das elaborações do ser humano sobre si mesmo e sobre sua relação com o Cosmo, elas não poderiam se contradizer, pois refletiriam a unidade de governo e a harmonia universal das leis divinas.
Por que, então, há discordâncias? Porque, socialmente, elas assumem configurações passageiras, onde as opiniões divergem sobre alguns pontos fundamentais no entendimento da vida e da realidade. No entanto, o progresso do pensamento científico e moral tende a criar um acordo ou, como disse Kardec, uma aliança, à medida que nossa compreensão das leis divinas – tanto físicas, quanto morais – crescer e se aperfeiçoar. Um exemplo da síntese possível surge na resposta á questão 888 de O Livro dos Espíritos: “O amor é a lei de atração para os seres vivos e organizados, e a atração é a lei de amor para a matéria inorgânica.”
Como instituição social, temos hoje em dia uma ciência restrita ao mundo material, dirigida por um paradigma que não pode acomodar resultados e confirmações da realidade espiritual, por mais que elas insistam em surgir por toda parte. Temos, por outro lado, uma religião que frequentemente perdeu seu contato com as realidades invisíveis das quais se originou, esqueceu-se da verdadeira experiência espiritual, para tornar-se um conjunto de ritos e preceitos para seus adeptos.
Observadas num recorte do tempo presente, elas de fato não têm como se aproximar. Mas somente uma compreensão parcial da ciência e da religião poderia dar a entender que elas são incompatíveis. Como afirma Kardec, a ciência deixará de ser puramente materialista e a religião aceitará as afirmações da ciência como auxiliares dos seus propósitos morais. O estudo aprofundado do Espiritismo como ciência e doutrina moral pode nos ajudar a diminuir e, algum dia, a suprimir o abismo hoje existente em nosso planeta, entre o pensamento científico e o religioso.


Esferas culturais de valor

Max Weber e Jürgen Habermas afirmam que uma característica distintiva da modernidade é a separação entre as esferas culturais de valor, que significa a autonomia entre a moral, a ciência e a arte.
Enquanto na Idade Média estas esferas se confundiam, com a Igreja, por exemplo, definindo não apenas critérios morais, como também legislando sobre conhecimento científico e conteúdo da arte, hoje em dia cada uma delas pode se desenvolver a partir de suas próprias regras, sem interferências.
Esta diferenciação permite que, hoje em dia, homens como Galileu possam afirmar que há luas em Júpiter sem serem acusados de heresia, e que cientistas possam estudar as células-tronco enquanto a religião, embora com direito a opinar, nada possa fazer diretamente contra eles.


A aliança entre a ciência e a religião


São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo têm de ser completados; em que o véu intencionalmente lançado sobre algumas partes desse ensino tem de ser levantado; em que a Ciência, deixando de ser exclusivamente materialista, tem de levar em conta o elemento espiritual e em que a Religião, deixando de ignorar as leis orgânicas e imutáveis da matéria, como duas forças que são, apoiando-se uma na outra e marchando combinadas, se prestarão mútuo concurso. Então, não mais desmentida pela Ciência, a Religião adquirirá inabalável poder, porque estará de acordo com a razão, já se lhe não podendo mais opor a irresistível lógica dos fatos.
A Ciência e a Religião não puderam, até hoje, entender-se, porque, encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, reciprocamente se repeliam. Faltava com que encher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse. Esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o Universo espiritual e suas relações com o mundo corpóreo, leis tão imutáveis quanto as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Uma vez comprovadas pela experiência essas relações, nova luz se fez: a fé dirigiu-se à razão; esta nada encontrou de ilógico na fé: vencido foi o materialismo. Mas, nisso, como em tudo, há pessoas que ficam atrás, até serem arrastadas pelo movimento geral, que as esmaga, se tentam resistir-lhe, em vez de o acompanharem. E toda uma revolução que neste momento se opera e trabalha os espíritos. Após uma elaboração que durou mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as consequências: acarretará para as relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de Deus. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 1, 8)
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* Este artigo foi publicado originalmente na Revista Universo Espírita.

Imagens:
- A liberdade guia o povo (1833 - detalhe), por E. Delacroix
- Retrato de Auguste Comte (data e autor desconhecidos)
- Ken Wilber, pensador estadunidense
- Folha de rosto da 7a. edição de O Evangelho Segundo o Espiritismo, em francês
- Cassiopeia A (NASA's Chandra X-Ray Observatory)

2 comentários:

  1. Maravilhoso o seu texto. Muito rico, bem preparado e elucidativo. Com sua licença e devida citação, irei ilustrar a palestra que reparei 70% com base nele. Parabéns! Agora sou sua seguidora.

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