Por Rita Foelker
Paul Feyerabend (1924-1994) é considerado um autor controverso em filosofia da ciência. Suas posições iconoclastas e sua afirmação de que o conhecimento científico não está em posição superior relativamente aos outros modos de conhecimento, como o mítico ou literário, levaram alguns leitores a entender que seu propósito era o de diminuir o valor da ciência.
O que ele fez, contudo, foi destruir a aura de superioridade que muitos querem atribuir ao conhecimento científico, e observá-lo simplesmente como fruto de uma atividade humana impregnada das características que nos fazem, ora passionais, ora dogmáticos, ora entusiastas de uma visão de mundo, ora incrédulos. E, a partir disso, Feyerabend propõe levar em conta que nossas características psicossociais influenciam o modo de fazer ciência, interferindo na eleição teorias e modelos com os quais o cientista trabalha.
O passado deve condicionar o futuro?
Uma das idéias deste autor sobre a prática científica – como vem sendo realizada “oficialmente” – é a de que ela está contaminada por maus hábitos que privilegiam a teoria existente. Costuma-se usar a teoria aceita no presente para avaliar novas concepções científicas. Exige-se o atendimento a uma “condição de coerência”, que diz que hipóteses novas devem ajustar-se às teses atualmente bem assentadas.
Pode-se exemplificar isto com a crença no modelo materialista, predominante nos meios científicos, a qual faz pensar que tudo o que não se baseie em pressupostos materialistas seja não-científico, desprovido de sentido ou indigno de atrair atenção dos cientistas.
Mas a “condição de coerência” historicamente nem sempre foi levada em conta.
Pierre Duhem (1861-1916), físico, matemático e filósofo da ciência, recorda em seu artigo Algumas Reflexões sobre as Teorias Físicas o fato da teoria de Newton ser incongruente com as leis de Kepler e também com a lei da queda dos corpos de Galileu. Enquanto, segundo Kepler, os planetas não exercem influência gravitacional sobre o sol, Newton enuncia que todo planeta exerce sobre o sol uma ação igual e diretamente oposta àquela que recebe. E Newton vai além. Ele ainda acrescenta que, se o sol fosse substituído por outro corpo, as ações exercidas sobre os diversos planetas seriam calculadas tendo por base a relação entre a massa desse novo corpo e a massa do novo sol!
Outras discrepâncias científicas podem ser encontradas entre Newton e Galileu. O primeiro diz que a aceleração de um corpo que cai diminui conforme nos afastamos do centro da Terra, enquanto, para o segundo, a aceleração dos corpos em queda livre é constante (não diminui e nem aumenta).
Onde estes raciocínios nos encaminham? À conclusão de que a anterioridade no tempo não deve contar em favor de uma tese, pois a condição de coerência contribui para a preservação apenas do que é antigo e não necessariamente do que está mais fundamentado. Um cientista que trabalhasse com o modelo kepleriano tenderia a considerar absurdo e rejeitar o princípio da gravitação universal enunciado por Newton. Hoje, porém, a lei de Newton é que é aceita e ensinada nas escolas.
O significado da cientificidade em cheque
O que não é considerado científico num momento pode vir a sê-lo posteriormente, bem como certas noções tidas como científicas podem cair por terra. Como o cientista pode conviver com este fato e até tirar proveito dele? Feyerabend propõe que ele compare teorias umas com as outras, em vez de comparar teorias e fatos. Afinal,os fatos podem dar apoio à sua teoria e a outra teoria incongruente com a sua, porque isso dependerá de sua interpretação do que observa. Mas admitindo examinar uma teoria alternativa, o cientista pode experimentar um modo diferente de ver os mesmos fatos e, assim, avaliar qual é mais satisfatório.
Porém, de onde viriam as visões alternativas? Muitas vezes, do passado, como no caso da teoria atomista dos gregos Demócrito (460-370 a.C.) e Leucipo (~490-420 a.C.) recuperada por John Dalton (1766-1844), que propôs o primeiro modelo atômico da idade contemporânea.
Assim como o atomismo, outras doutrinas antigas podem parecer bizarras e sem sentido porque seu conteúdo, ou não é conhecido, ou é alterado, ou é olhado pela lente do preconceito. Mas podem conter elementos que interessam ao desenvolvimento científico da atualidade.
Como exemplo, Feyerabend analisa o caso de duas teorias concorrentes no campo da medicina: a ocidental e a tradicional chinesa, na China comunista. Em Contra o Método, o autor fala de como uma ciência importada do Ocidente afastou o interesse naquele país pelos métodos tradicionais de diagnóstico e tratamento como a acupuntura, a medicina de ervas, a moxabustão, bem como por toda a doutrina que as justificava. Os médicos que operavam estes métodos teriam de ser treinados para atuar segundo o novo modelo ou, então, ser impedidos de exercer a profissão. Essa atitude perdurou até por volta de 1954, quando uma campanha de inspiração política surgiu, em prol do retorno à medicina tradicional. Isso abriu espaço para uma dualidade de concepções e a convivência entre as duas práticas médicas.
Muitas vezes, certas partes da ciência se tornam rígidas e intolerantes, sem que isso invalide os pressupostos e métodos da teoria rejeitada. Neste caso específico, algumas conclusões surpreendentes atestaram que havia “efeitos e meios de diagnóstico que a medicina moderna é incapaz de repetir e para os quais não dispõe de explicação. (...) [Na medicina de ervas,] como em outros casos, o conhecimento é obtido antes por uma multiplicidade de concepções do que pela aplicação determinada de uma ideologia preferida. E percebemos que a proliferação talvez tenha de ser efetuada por entidades não-científicas cujo poder seja suficiente para superar as mais poderosas instituições científicas”.
Diante disso, vê-se que nenhuma teoria mais moderna e avançada é invulnerável. Por isso, não podemos focalizar os problemas do conhecimento esquecendo-nos da história e das circunstâncias em que um dado conhecimento foi aceito e, outro, rejeitado.
Ciência como processo inacabado
Considera-se que as observações precisas, os princí
pios claros e teorias corroboradas já são suficientes para decidir sobre a aceitação ou rejeição de uma hipótese recém-sugerida. No entanto, observações, princípios e teorias não são entidades atemporais, embora seja comum pressupor que sejam.
A ciência é um processo histórico heterogêneo e complexo. Aquilo que parece fundamentado hoje pode carecer de evidências comprobatórias, amanhã. Recordamos que a hipótese geocêntrica – de que a Terra é o centro do Universo – e a teoria aristotélica da percepção se apoiavam mutuamente. O sistema de Aristóteles é coerente e racional. Porém, ambos foram substituídos por sistemas mais satisfatórios, do ponto de vista do seu poder explicativo e preditivo.
Por outro lado, é improvável que a teoria de Copérnico surgisse ao mesmo tempo que todas as outras teorias de que ela necessita para se apoiar. Mas só após o surgimento destas outras teorias, o heliocentrismo passa a fazer sentido.
Os cosmologistas adeptos do geocentrismo não sabiam que a doutrina de Copérnico poderia dar nascimento a um sistema científico aceitável do ponto de vista do método científico. Pelo contrário, muitos deles resistiram às novas idéias.
Também os cientistas materialistas de hoje, não suspeitam que a teoria espírita possa originar um modelo científico não só aceitável, como frutífero. Mas aqueles que acreditam podem trabalhar para que isto aconteça.
Quem foi Paul Feyerabend

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* Este texto foi originalmente publicado na Edição 59 da Revista Universo Espírita.