quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Seguir o fluxo ou nadar contra a corrente?

Tudo está fluindo para o seu melhor e para a minha melhoria...

Por Rita Foelker - Texto inédito

Seguir o fluxo. Nadar contra a corrente. Eu já ouvi as pessoas defendendo as duas coisas.
Em “nadar contra a corrente” parece haver algo de heroico, uma afirmação da vontade, que aumenta a satisfação de realizar o que se deseja. Superar as circunstâncias adversas.
Em “seguir o fluxo” parece haver sabedoria, tranquilidade, aceitação e percepção de que as coisas precisam amadurecer para frutificar.
Eu não tenho dúvida de que há um fluxo, um momento propício para cada coisa acontecer e que isto está além da minha possibilidade de determinação e controle.
Por outro lado, embora não acredite em “nadar contra a corrente” das leis universais, sei que tenho muito que superar – as minhas fragilidades, os meus traumas.
E que as circunstâncias aparentemente tentam me refrear, podendo levar a pensar que devo lutar contra elas. Mas que também é uma questão de interpretação pois, como disse Osho: “Aqueles fortes ventos que batem firme não são realmente inimigos. Eles ajudam você a integrar-se. Parece até que vão desenraizá-lo, mas, ao lutar com eles, você se enraíza.”[1] Ora, preciso me fortalecer. Por isso, sei que, se não reafirmar sempre aquilo que quero, que é meu ideal, se deixar simplesmente “rolar”, provavelmente vou me desconcentrar, perder-me nos meus labirintos internos, deixando passar oportunidades, ignorando as inspirações e intuições. Não se trata, porém, de lutar contra as circunstâncias e, sim, de compreendê-las, ver além delas. Alterá-las, se for o caso.
Seguir o fluxo também é diferente de abandonar-se à correnteza, de largar tudo e apenas esperar. Entendo que a determinação e o foco precisam existir, sobretudo quando não parece muito claro que tudo está fluindo para o seu melhor e para a minha melhoria – porque está, mesmo que ignoremos. Neste planeta onde vivemos no espaço-tempo, as coisas podem ter alguma demora. Então foco, atenção e determinação tornam-se importantíssimos, assim como a sinceridade no desejo de automelhoria.
Eis onde entra o semear e o colher. Se todos os dias plantarmos uma semente na forma de ato, palavra ou pensamento, em favor daquilo que esperamos realizar, a colheita chegará. E isto, sendo determinação, foco, atenção (e também autossuperação, em muitos casos), não significa nadar contra a corrente das leis universais. Significa enxergar além das circunstâncias visíveis e realizar os ajustes necessários, primeiro em nós, depois em torno de nós. Significa depositar nossa fé no fluxo da vida lembrando, como diz Aymará, que a energia se move em círculos.
Eis onde entra a confiança. Se permanecermos serenos (se conseguirmos isso) vamos perceber que, em determinado ponto, parece que os acontecimentos se apressam, o vento enfuna a vela e tudo se encaixa de um modo que, às vezes, sequer imaginamos e de um jeito muito melhor do que poderíamos supor.
Só não se esqueça de que há atitudes que, quando as adotamos, são como “fechar a torneira”. Mas isso fica, talvez, para outro texto...


[1] Se você tem comichões ao ler o nome de Osho, siga o conselho de Kardec: “Julgamos os espíritos pela sua linguagem e as suas ações. As ações dos espíritos são os sentimentos que eles inspiram e os conselhos que dão.” (O livro dos médiuns, item 267, 2º)

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Falsos perfis na prática mediúnica*

Um importante aspecto das comunicações de espíritos é determinar sua autenticidade

Por Ariane de Assis Jordão

De acordo com notícia publicada pelo portal IDGNow, no segundo semestre do ano passado, o Facebook admitia ter mais de 83 milhões de perfis falsos.
Nem todos são mal intencionados. Algumas contas são duplicadas. Há também criação de perfis indevidos – para animais de estimação, por exemplo. Mas o número não deixa dúvidas de que eles podem ser encontrados a qualquer momento, pelas redes sociais.
O mundo virtual permite o crescimento do número de casos, porque facilita a veiculação de imagens e textos sem comprovação de autenticidade das informações. Não se sabe se a foto de perfil é mesmo do titular da conta e, muitas vezes, só poderia saber quem o conhecesse pessoalmente. Também é comum encontrarmos frases com falsa autoria atribuída. Ou uma mesma frase, atribuída a autores diferentes.
Os perfis falsos e autorias duvidosas já estavam presentes nas considerações de Kardec perante a prática mediúnica. A questão da autenticidade de informações e de determinação da verdadeira identidade do autor de uma comunicação mediúnica está presente desde os primórdios das reuniões espíritas.
Allan Kardec considerou a identificação dos espíritos uma das questões “mais controvertidas” da prática mediúnica e analisou as razões, tanto de encontrarmos falsas comunicações, como dados falsos em comunicações mediúnicas legítimas. Vejamos então as orientações que ele nos deixou, a esse respeito.

Espíritos podem se enganar

Um primeiro caso de informações equivocadas provenientes do mundo espiritual ocorre quando os próprios espíritos estão enganados.
A percepção de sua situação no mundo espiritual está relacionada à evolução alcançada. Suas ideias retratam seus conhecimentos e a amplitude do seu entendimento das questões que aborda. Quando é inferior, ainda não totalmente desmaterializado, um espírito conserva as ideias que tinha na Terra e as utiliza para se expressar. Alguns acreditam continuar encarnados, por não terem percebido a transformação da morte física pela qual passaram.
Todo sofrimento após a morte é de natureza moral e não reflete uma condição externa, mas da própria consciência em desalinho. Se suas crenças, porém, envolviam a existência de um céu ou de um inferno, poderão dizer que ali se encontram, mesmo quando sabemos que tais locais físicos de recompensas e de punições futuras não existem.
Tais espíritos, que fornecem informações incorretas, podem não ter a intenção de nos enganar, estando, eles próprios, equivocados, o mesmo podendo ocorrer no que diz respeito a ideias, filosofias e eventuais revelações que eles nos ofereçam.
Como lidar com tais situações? É importante não ter pressa em aceitar como verdadeiro, mas primeiro submeter ao crivo da razão, aquilo que chega pela via mediúnica. É comum que comunicações de espíritos inferiores acabem se contradizendo entre si, ou que tais espíritos contradigam a si próprios, na mesma mensagem ou na continuidade dos contatos mediúnicos.
Os espíritos não pensam todos da mesma maneira, nem têm a mesma visão sobre as coisas de que falam, porque há diferentes degraus na escala evolutiva onde se localizam. E mais, segundo Erasto orienta em O livro dos médiuns: “Podendo manifestar-se Espíritos de todas as categorias, resulta que suas comunicações trazem o cunho da ignorância ou do saber que lhes seja peculiar no momento, o da inferioridade, ou da superioridade moral que alcançaram. A distinguir o verdadeiro do falso, o bom do mau, é a que devem conduzir as instruções que temos dado. Cumpre não esqueçamos que, entre os Espíritos, há, como entre os homens, falsos sábios e semissábios, orgulhosos, presunçosos e sistemáticos.”
Assim, afirma Kardec em O livro dos médiuns que, “para se compreenderem a causa e o valor das contradições de origem espírita, é preciso estar-se identificado com a natureza do mundo invisível e tê-lo estudado por todas as suas faces”.

Espíritos podem querer nos enganar

Diferente é o caso dos espíritos que buscam nos confundir ou enganar deliberadamente, que Kardec chama de “mistificadores”. Mistificar é iludir, fazer acreditar numa mentira.
Nenhum médium, por mais experiente que seja, pode considerar-se isento de mistificações e os bons médiuns têm consciência disso, sendo modestos e não se considerando infalíveis.
As razões são várias, muitas vezes de ordem particular, envolvendo um espírito e uma pessoa ou grupo específico. Outras vezes, a própria atitude do grupo ou médium dá ensejo a tais ocorrências.
Uma das causas apontadas em O livro dos médiuns para as mistificações é o abuso da faculdade, ocasionado pelo entusiasmo de principiantes em obter muitas comunicações, a todo momento, visto não estarem os espíritos à sua disposição. A recomendação é desenvolver uma disciplina de trabalho, com dias e horas determinados para o exercício, “porque assim se entregarão ao trabalho em condições de maior recolhimento e os espíritos que os queiram auxiliar, estando prevenidos, se disporão melhor a prestar esse auxílio”. (O livro dos médiuns, item 217).
Outra causa de mistificação é a insistência em obter comunicações de um espírito determinado. Ignorando que esta comunicação nem sempre será permitida ou possível, forçar a obtenção dá margem à ação dos mistificadores, aos quais pouco ou nada interessam aspectos éticos ou a verdade.
Quando houver suspeita de ocorrência de mistificação, Allan Kardec sugere que se façam perguntas aos espíritos, pois que “raramente suportam a prova das perguntas feitas com cerrada lógica, por meio das quais o interrogante os leva aos seus últimos redutos” (O livro dos médiuns, item 287).
A orientação para o caso de um componente de um grupo encontrar-se numa situação dessas, é de que os membros sejam avisados e fiquem alertas. “Se enérgica resistência o não levar ao desânimo, a obsessão se tornará mal contagioso, que se manifestará nos médiuns, pela perturbação da mediunidade, e nos outros pela hostilidade dos sentimentos, pela perversão do senso moral e pela turbação da harmonia” (O livro dos médiuns, item 340).
Uma pergunta de Kardec aos espíritos superiores merece nossa atenção: “Por que permite Deus que pessoas sinceras e que aceitam o espiritismo de boa-fé sejam mistificadas? Não poderia isto ter o inconveniente de lhes abalar a crença?” Eis a explicação: “Se isso lhes abalasse a crença, é que não tinham muito sólida a fé. Os que renunciassem ao espiritismo, por um simples desapontamento, provariam não o haverem compreendido e não lhe terem atentado na parte séria. Deus permite as mistificações, para experimentar a perseverança dos verdadeiros adeptos e punir os que do espiritismo fazem objeto de divertimento” (O livro dos médiuns, item 303)
A prevenção dessas situações passa por dois cuidados: a prece sincera e a atenção aos menores sinais da presença de mistificadores. “O primeiro atrai os bons Espíritos, que só assistem zelosamente os que os secundam, mediante a confiança em Deus; o outro prova aos maus que estão lidando com pessoas bastante clarividentes e bastante sensatas, para se não deixarem ludibriar” (Idem).

Médiuns podem se enganar e podem nos enganar

Há “falsos perfis”, também, no contexto dos encarnados. Há pessoas que se passam por médiuns e médiuns que divulgam falsas comunicações. O livro dos médiuns tem um capítulo dedicado aos médiuns interesseiros e às fraudes espíritas, pois segundo Kardec já afirmou e bem sabemos, “tudo pode virar objeto de exploração”. Há casos em que o médium pretende obter ganhos financeiros com sua faculdade, enquanto a diretriz espírita é, conforme o ensinamento cristão, dar de graça o que de graça recebemos. Outras vezes, o ganho é da vaidade ou vantagens pessoais, o que, em qualquer caso, compromete a sua produção mediúnica – se for realmente mediúnica – porque as qualidades morais do médium sempre influenciarão, não apenas as comunicações, mas a qualidade dos espíritos que dele se aproximam.
Há, contudo, médiuns que são instrumentos de espíritos enganadores, sem o saberem. Ou que pensam ser médiuns, quando mais não fazem do que dar vazão às suas próprias ideias, num processo que ficou conhecido nos meios espíritas como “animismo”. De fato, todo médium tem uma papel ativo na comunicação, atuando como um intérprete mais ou menos fiel da comunicação do espírito. Mas pode haver confusão entre o que vem do próprio médium e o que é do espírito comunicante e é isso que precisamos evitar. A falta de conhecimento da mediunidade e das leis do mundo espiritual contribui para que uma pessoa nessas condições permaneça iludida. A humildade, o estudo sério e metódico e o autoconhecimento são os melhores antídotos para estes casos.

Estudar e comparar

Kardec considera todas as comunicações de espíritos passíveis de nos servirem ao aprendizado. Algumas são instrutivas em si mesmas. Outras revelam a situação em que os desencarnados que se encontram, de ignorância ou conhecimento, de paz ou sofrimento moral. Cabe a nós ter calma e critério, não atribuir veracidade a todos os relatos, mas compará-los com os conhecimentos adquiridos nos estudos espíritas, para maior segurança e discernimento.
Além das orientações específicas de Kardec e dos espíritos da Codificação, para cada um dos casos acima, de modo geral, alguns cuidados são essenciais. Por parte do médium, uma constante e sincera busca de autoconhecimento, erradicando as causas do autoengano, o orgulho e a vaidade, que além de prejudicarem sua capacidade de serem medianeiros, aproximam-nos de espíritos inferiores, muitos dos quais são levianos, brincalhões ou, mesmo, mistificadores. "Estudai, comparai, aprofundai. Incessantemente vos dizemos que o conhecimento da verdade só a esse preço se obtém” (O livro dos médiuns, item 301).

ARIANE DE ASSIS JORDÃO é educadora e pesquisadora espírita

Para saber mais:
- Facebook admite ter mais de 83 milhões de perfis falsos. Portal IDGNow, postado em 02/08/2012. http://migre.me/ekNbq
- O livro dos médiuns, de Allan Kardec. Segunda parte, capítulos XXIV, XXVII e XXVIII.

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* Este artigo foi publicado originalmente no Jornal Leitura Espírita, Edição 13, de Maio/Junho 2013.

domingo, 11 de agosto de 2013

A essência do "caminho espiritual"

Por Rita Foelker - Texto inédito

Às vezes, considero importante dizer o que penso sobre um assunto, depois de muito ouvir, ler e pensar sobre ele. Mas esta reflexão começou especificamente nesta madrugada, em uma festa de aniversário, no meio de uma conversa. E veio se completando em meu pensamento, até chegar aqui, onde me sento com o "note" no colo e a transformo em palavras.

Existe uma expressão genérica muito em uso nos meios interessados em estudos e práticas voltados à espiritualidade. É a expressão "caminho espiritual".

Aymará já escreveu sobre isso, em seu texto intitulado "Ir", postado neste blog há algum tempo, em que se lê: "onde quer que o caminhante esteja, entre o Leste e o Oeste, entre o Sul e o Norte, há o ponto central de sua vida localizado em si mesmo, onde ele decide (ou descobre) quem ele realmente é, e a partir daí nada mais ao redor parece o mesmo".

Isso me leva a pensar no caminho espiritual como uma busca de encontro com a sua própria essência espiritual, seus reais objetivos e os valores imperecíveis de vida. Portanto, entendo que o caminho espiritual é basicamente uma procura de nós mesmos, da verdade de cada um e que também encerra uma verdade essencial comum à Humanidade.

Tem pessoas que acham que um caminho espiritual envolve ter um guia encarnado, ingressar em alguma ordem, estudar muitos anos, atravessar iniciações, o que é respeitável como fruto da livre escolha, e mais respeitável ainda se provém de um desejo sincero. Mas não me parece que passar por todo esse processo conduza ao desfecho de um encontro de si mesmo, a algum tipo de auto-iluminação. E, principalmente, não me parece que tenha, como resultado inevitável, alguma transformação íntima real.

A aproximação desse "centro" de si mesmo", a que Aymará se refere, aumenta o sentimento de se estar bem consigo mesmo e com todos os demais seres. Não significa, porém, nos forçarmos a isso. Não se trata de uma adoção de certas práticas superficiais. Não se trata de fingir mudança, mas de observarmo-nos e as nossas relações, cotidianamente, no que elas nos ensinam sobre nós mesmos. E, a partir de então, procurar desenvolver atitudes e adquirir hábitos melhores que os que trouxemos até o presente momento. Creio que isso é caminho espiritual.




Precisamos atualizar a ciência espírita?*

Por Rita Foelker

Muito se conjecturou em torno do “caráter essencialmente progressivo” do Espiritismo, que Kardec consignou em Obras Póstumas, ao tratar da sua constituição. Diz o Codificador: “Por ela [a Doutrina Espírita] não se embalar em sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis na Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com esta lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.”
Vemos aqui que Kardec refere-se ao progresso da ciência revelando novas leis. Afinal, as leis divinas são a base mais sólida dos princípios do Espiritismo e da análise dos ensinamentos dos Espíritos e nossa compreensão delas é o sustentáculo de uma ampla gama de conhecimentos sobre a vida espiritual e o futuro imortal dos seres humanos.
Vez por outra, no meio espírita, surgem opiniões segundo as quais o Espiritismo precisa de atualização, algumas delas pretensamente apoiadas no seu próprio caráter progressivo. Ora, são os livros de Kardec que precisam de modernização, para se adaptarem ao contexto e linguagem atuais. Ora, é a obra de autores encarnados e desencarnados que surge como se fossem novos ares a ventilar as ideias expostas nos textos sesquicentenários da Codificação. Em artigo publicado sob o título sugestivo de “Como Combater o Espiritismo”, publicado no livro Curso Dinâmico de Espiritismo , o Grande Desconhecido (Ed Paidéia), Herculano Pires já alertava para as mistificações grosseiras provenientes de Espíritos, médiuns e grupos que, pouco afeitos ao estudo das obras fundamentais da Doutrina, surgiam de tempos em tempos com novidades que pareciam ofuscar o brilho suave e perene dos ensinos doutrinários.
Recentemente, uma proposta diferente de atualização surgiu no meio espírita. Em março de 2008, o escritor espírita Luiz Gonzaga Pinheiro, afirmou em entrevista à revista O Consolador, ao ser questionado sobre sua campanha pró-atualização da Doutrina Espírita: “Então, a ideia não é nova. É do próprio codificador do Espiritismo, Allan Kardec, que em Obras Póstumas deixou bem clara a opinião de que a Doutrina deveria ser atualizada a determinados períodos de tempo, através de congressos, sempre se posicionando ao lado da ciência, sob pena de suicidar-se. Como a ciência caminha atualmente a uma velocidade alarmante, daqui a vinte anos corremos o risco de contarmos apenas com a parte filosófica-moral do Espiritismo, pois atualmente boa parte do conhecimento científico lá exposto está errada.”
Ora, e em que consistiria esta atualização? O entrevistado explica: “A Doutrina em sua essência é inatacável. A parte científica é que necessita de reparos, através de notas de rodapé, esclarecimentos e aprofundamentos em outra obra ou de outra maneira que uma comissão multidisciplinar julgar mais conveniente.”

O que é ciência?

Mas será que a ciência espírita necessita mesmo de atualização? Para responder a esta pergunta, necessitamos primeiro entender o que chamamos de ciência.
No artigo “Afinal, pode-se falar numa ciência espírita?”, publicado na Universo Espírita nº 45 e que contou com a participação de Silvio Seno Chibeni, dissemos que “a concepção mais comum de ciência é a de um conjunto de teorias solidamente comprovadas por observações e experiências científicas, cuja autoridade seria inquestionável e cujo progresso ocorreria por acúmulo de conhecimentos. Tal concepção tem sofrido repetidos golpes.” Ou seja, a atividade científica deixou de ser encarada como um bloco monolítico de conhecimentos comprovados para tornar-se fruto de uma atividade humana que se configura de acordo com os grupos que a desenvolvem.
Assim, a ciência é hoje considerada mais como um corpo de conhecimentos falível, que pode precisar ser eventualmente revista.
Thomas Kuhn (1922-1996), um dos pensadores contemporâneos que mudou nossa maneira de compreender atividade científica define a ciência como uma prática consensual de um grupo de cientistas. Segundo ele, toda ciência apresenta um padrão, em seu desenvolvimento, que compreende determinados estágios:
a) pré-paradigmático, onde não há consenso entre os cientistas e não se consegue obter um conjunto consistente de dados científicos;
b) paradigmático, também chamado de ciência normal, quando há um acordo sobre os principais aspectos da teoria, o que permite o avanço da pesquisa e o aumento da sua base de dados observacionais;
c) crise, quando o consenso se desfaz e instala-se o debate entre os cientistas, geralmente em razão da impossibilidade de resolução de problemas da pesquisa baseada nos parâmetros oferecidos pelo paradigma;
d) revolução científica, quando ocorrem mudanças teóricas profundas, cria-se um novo modo de pensar e de praticar ciência, acompanhado de uma nova linguagem que não pode ser entendida por meio do uso do antigo quadro conceitual.
Durante o período paradigmático, ou ciência normal, há amplo consenso entre os cientistas sobre as entidades existentes no universo e sobre o modo como elas se relacionam. Os problemas dignos de serem levados em conta pela comunidade científica também são fruto de um acordo, assim como as formas aceitáveis de encontrar soluções para eles. A falha de um cientista em resolver um problema é considerada um fracasso isolado e não um fracasso do modelo adotado.
Nos períodos de crise, caracterizados pelo amplo desacordo e pela proliferação de teorias rivais, as suposições que antes dirigiam a pesquisa mostram-se incapazes de tratar algumas questões importantes, que passam a ser consideradas como anomalias.
A ciência normal não se propõe a descobrir novidades e é bem sucedida quando não as encontra. No entanto, embora o resultado da investigação seja eventualmente antecipado, alcançar tal resultado pode se constituir numa operação muito problemática que desafia as capacidades dos cientistas. Fenômenos imprevistos são periodicamente descobertos. Eles são produzidos inadvertidamente no “jogo da ciência” e podem contrariar um conjunto de regras explícitas ou implícitas (estabelecidas pelos compromissos do pesquisador). Durante algum tempo, os cientistas podem ignorá-los, mas chega-se a um nível crítico onde as antigas ideias dominantes se tornam insustentáveis, o que pode conduzir à introdução de novas suposições – geralmente incompatíveis com o antigo modelo.
Quando o número e a gravidade das anomalias crescem no domínio de uma determinada ciência e um novo conjunto de suposições ou de padrões que dá conta de explicá-las atinge um grau de consistência suficiente para substituir o outro, pode haver troca de um paradigma por outro.
Isto significa que o antigo modelo está superado por um novo, mais satisfatório. Bem... Isto pode ocorrer com o Espiritismo?
Silvio Seno Chibeni em seu artigo “O Paradigma Espírita”, publicado no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp, esclarece: “O exame isento e criterioso da situação mostra de forma inquestionável que o Espiritismo não experimenta, nem jamais experimentou, qualquer processo de acumulação de anomalias, e muito menos em seus pontos essenciais, acumulação essa que constitui, segundo Kuhn, um pré-requisito para o desencadeamento de uma crise, capaz de justificar a proliferação de teorias alternativas, e, eventualmente, a substituição do paradigma. Aproveitamos para notar aqui que, em vista disso, incorreram em erro científico aqueles que, já desde os primeiro tempos, têm desenvolvido suas pesquisas fora do paradigma espírita. Não há razões científicas para essa atitude, que só contribui para a dispersão de esforços tão prejudicial ao avanço do conhecimento, como mostrou Kuhn.”
Não há, portanto, razão para se pensar em necessidade de atualização da ciência espírita. O paradigma espírita, representado por suas concepções metafísicas, suas teorias, sua metodologia e os exemplos de sua prática permanece como diretriz segura de pesquisa para quem deseje praticar a ciência espírita.
Chibeni oferece um segundo argumento em favor desta posição: “A segunda parte de nossa resposta passa pela observação de que, dada a natureza específica do paradigma espírita, não se deve esperar que tenha um dia que ser abandonado ou modificado em seus princípios fundamentais. A razão disso é que, exceto por alguns princípios reguladores abstratos, tais princípios encontram-se muito próximos do nível fenomênico, de modo que, utilizando-nos da nomenclatura filosófica, poderíamos classificar a teoria espírita como essencialmente fenomenológica.(...) Por ser fenomenológica, ela goza de uma alta estabilidade diante do progresso de outras áreas da ciência, havendo atravessado incólume as radicais mudanças de paradigma ocorridas na física nas primeiras décadas de nosso século. (...) Sua confirmação independe totalmente de aparelhos, conforme bem enfatizou Kardec, o que é uma enorme vantagem do ponto de vista epistemológico, pelas razões esboçadas acima. São proposições da mesma classe epistêmica que, digamos, as proposições de que o Sol existe, de que o fogo queima, a cicuta envenena, etc. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá a ideia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, quando relatam fatos, contêm expressões e veiculam pensamentos peculiares e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os variados e abundantes casos de psicografia de que somos testemunhas. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida quanto ao princípio básico da Doutrina Espírita, a existência e sobrevivência do espírito.”

Ciência não-espírita do espírito?

“Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em inúmeros fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossa vida, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc. Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências a favor do Espiritismo constitui séria omissão por parte de seus críticos e daqueles que tentam fazer ciência não-espírita do espírito.” – conclui Chibeni.
Ou seja, o Espiritismo tem um repertório próprio de fenômenos estudados e de problemas a analisar, uma metodologia própria e eficiente e, graças a Kardec, vêm acompanhados da importante noção de progresso, ou seja, de que o conhecimento não é estanque.
O que Luiz Gonzaga Pinheiro propõe não é uma atualização da ciência espírita, nem do Espiritismo. Como ele mesmo diz, poderíamos acrescentar notas de rodapé, dizendo o que a ciência tem descoberto a respeito dos planetas, da matéria, mas sem que isso redunde em mudança estrutural das teorias espíritas sobre o universo material e espiritual.
Quanto aos conhecimentos de química e astronomia, recordemos que Kardec escreveu muitas vezes levando em conta os avanços da ciência da época, que vivia sob a luz de outro paradigma, e isto não deve diminuir o valor nem a importância do conjunto da obra kardeciana. Afinal, ela é também um testemunho de seu tempo em alguns trechos, sendo permanente quanto aos seus aspectos fundamentais.
Parece-nos pouco fundamentada a opinião de que a ciência espírita se perderá, em vinte anos, se não for atualizada segundo a linguagem da ciência atual. Afinal, a ciência que se faz hoje pode estar desatualizada em vinte anos, enquanto que o Espiritismo poderá manter seu vigor e sua atualidade.
Além disso, falando do caráter progressivo, Allan Kardec se referiu, na “Constituição do Espiritismo”, especificamente a mudanças que atingissem as bases do entendimento espírita da realidade, ou seja, a sua concepção das leis naturais. Ele não se referiu às adequações de nomenclatura, as quais são sempre perigosas, já que os termos de uma teoria nascem dentro dela, para servir aos seus próprios objetivos, e dificilmente podem ser transplantados para outros contextos sem que algo se perca ou desvirtue.
Antes de pensar em atualizar o Espiritismo, é mais importante estudá-lo na profundidade e atenção que ele merece, para poder perceber sua real importância e peculiaridade, como a mais completa e frutífera ciência do Espírito que a Humanidade já produziu.



Kuhn como autor relevante em filosofia da ciência

Apesar de não ter recebido nenhum treinamento formal em história, Thomas Kuhn conseguiu com o seu ensaio em forma de livro transformar radicalmente o cenário mundial da filosofia da ciência e história da ciência. Como disse um de seus raros estudantes de doutorado e um de seus primeiros colaboradores, o historiador da ciência norte-americano John Heilbron, Kuhn “foi o mais influente analista do desenvolvimento científico durante o período final do século 20”.
A tese mais importante e conhecida de A Estrutura das Revoluções Científicas afirma que a ciência não se desenvolve através da obediência rígida a cânones metodológicos, mas, sim, por empreender uma prática convergente e unificada de pesquisa, possível por meio da aquisição de paradigmas. O conceito central da reconstrução da racionalidade científica levada a cabo por Kuhn é o de paradigma. Para ele, o paradigma determina a cientificidade de uma área específica de investigação.”
Segundo Kuhn, devemos compreender paradigmas como “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes”. Ou seja, uma das funções mais importantes que o paradigma desempenha é a de engendrar o consenso dentro de uma determinada comunidade científica, delimitando os fatos relevantes a serem investigados, elegendo os métodos adequados de abordagem e prescrevendo as soluções legítimas. (Revista Ciência Hoje, Dezembro de 2002)


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* Este texto foi publicado originalmente na Edição 54 da Revista Universo Espírita, sob o título "A ciência espírita está desatualizada?"