domingo, 11 de agosto de 2013

Precisamos atualizar a ciência espírita?*

Por Rita Foelker

Muito se conjecturou em torno do “caráter essencialmente progressivo” do Espiritismo, que Kardec consignou em Obras Póstumas, ao tratar da sua constituição. Diz o Codificador: “Por ela [a Doutrina Espírita] não se embalar em sonhos irrealizáveis, não se segue que se imobilize no presente. Apoiada tão só nas leis na Natureza, não pode variar mais do que estas leis; mas se uma nova lei for descoberta, tem ela que se pôr de acordo com esta lei. Não lhe cabe fechar a porta a nenhum progresso, sob pena de se suicidar. Assimilando todas as ideias reconhecidamente justas, de qualquer ordem que sejam, físicas ou metafísicas, ela jamais será ultrapassada, constituindo isso uma das principais garantias de sua perpetuidade.”
Vemos aqui que Kardec refere-se ao progresso da ciência revelando novas leis. Afinal, as leis divinas são a base mais sólida dos princípios do Espiritismo e da análise dos ensinamentos dos Espíritos e nossa compreensão delas é o sustentáculo de uma ampla gama de conhecimentos sobre a vida espiritual e o futuro imortal dos seres humanos.
Vez por outra, no meio espírita, surgem opiniões segundo as quais o Espiritismo precisa de atualização, algumas delas pretensamente apoiadas no seu próprio caráter progressivo. Ora, são os livros de Kardec que precisam de modernização, para se adaptarem ao contexto e linguagem atuais. Ora, é a obra de autores encarnados e desencarnados que surge como se fossem novos ares a ventilar as ideias expostas nos textos sesquicentenários da Codificação. Em artigo publicado sob o título sugestivo de “Como Combater o Espiritismo”, publicado no livro Curso Dinâmico de Espiritismo , o Grande Desconhecido (Ed Paidéia), Herculano Pires já alertava para as mistificações grosseiras provenientes de Espíritos, médiuns e grupos que, pouco afeitos ao estudo das obras fundamentais da Doutrina, surgiam de tempos em tempos com novidades que pareciam ofuscar o brilho suave e perene dos ensinos doutrinários.
Recentemente, uma proposta diferente de atualização surgiu no meio espírita. Em março de 2008, o escritor espírita Luiz Gonzaga Pinheiro, afirmou em entrevista à revista O Consolador, ao ser questionado sobre sua campanha pró-atualização da Doutrina Espírita: “Então, a ideia não é nova. É do próprio codificador do Espiritismo, Allan Kardec, que em Obras Póstumas deixou bem clara a opinião de que a Doutrina deveria ser atualizada a determinados períodos de tempo, através de congressos, sempre se posicionando ao lado da ciência, sob pena de suicidar-se. Como a ciência caminha atualmente a uma velocidade alarmante, daqui a vinte anos corremos o risco de contarmos apenas com a parte filosófica-moral do Espiritismo, pois atualmente boa parte do conhecimento científico lá exposto está errada.”
Ora, e em que consistiria esta atualização? O entrevistado explica: “A Doutrina em sua essência é inatacável. A parte científica é que necessita de reparos, através de notas de rodapé, esclarecimentos e aprofundamentos em outra obra ou de outra maneira que uma comissão multidisciplinar julgar mais conveniente.”

O que é ciência?

Mas será que a ciência espírita necessita mesmo de atualização? Para responder a esta pergunta, necessitamos primeiro entender o que chamamos de ciência.
No artigo “Afinal, pode-se falar numa ciência espírita?”, publicado na Universo Espírita nº 45 e que contou com a participação de Silvio Seno Chibeni, dissemos que “a concepção mais comum de ciência é a de um conjunto de teorias solidamente comprovadas por observações e experiências científicas, cuja autoridade seria inquestionável e cujo progresso ocorreria por acúmulo de conhecimentos. Tal concepção tem sofrido repetidos golpes.” Ou seja, a atividade científica deixou de ser encarada como um bloco monolítico de conhecimentos comprovados para tornar-se fruto de uma atividade humana que se configura de acordo com os grupos que a desenvolvem.
Assim, a ciência é hoje considerada mais como um corpo de conhecimentos falível, que pode precisar ser eventualmente revista.
Thomas Kuhn (1922-1996), um dos pensadores contemporâneos que mudou nossa maneira de compreender atividade científica define a ciência como uma prática consensual de um grupo de cientistas. Segundo ele, toda ciência apresenta um padrão, em seu desenvolvimento, que compreende determinados estágios:
a) pré-paradigmático, onde não há consenso entre os cientistas e não se consegue obter um conjunto consistente de dados científicos;
b) paradigmático, também chamado de ciência normal, quando há um acordo sobre os principais aspectos da teoria, o que permite o avanço da pesquisa e o aumento da sua base de dados observacionais;
c) crise, quando o consenso se desfaz e instala-se o debate entre os cientistas, geralmente em razão da impossibilidade de resolução de problemas da pesquisa baseada nos parâmetros oferecidos pelo paradigma;
d) revolução científica, quando ocorrem mudanças teóricas profundas, cria-se um novo modo de pensar e de praticar ciência, acompanhado de uma nova linguagem que não pode ser entendida por meio do uso do antigo quadro conceitual.
Durante o período paradigmático, ou ciência normal, há amplo consenso entre os cientistas sobre as entidades existentes no universo e sobre o modo como elas se relacionam. Os problemas dignos de serem levados em conta pela comunidade científica também são fruto de um acordo, assim como as formas aceitáveis de encontrar soluções para eles. A falha de um cientista em resolver um problema é considerada um fracasso isolado e não um fracasso do modelo adotado.
Nos períodos de crise, caracterizados pelo amplo desacordo e pela proliferação de teorias rivais, as suposições que antes dirigiam a pesquisa mostram-se incapazes de tratar algumas questões importantes, que passam a ser consideradas como anomalias.
A ciência normal não se propõe a descobrir novidades e é bem sucedida quando não as encontra. No entanto, embora o resultado da investigação seja eventualmente antecipado, alcançar tal resultado pode se constituir numa operação muito problemática que desafia as capacidades dos cientistas. Fenômenos imprevistos são periodicamente descobertos. Eles são produzidos inadvertidamente no “jogo da ciência” e podem contrariar um conjunto de regras explícitas ou implícitas (estabelecidas pelos compromissos do pesquisador). Durante algum tempo, os cientistas podem ignorá-los, mas chega-se a um nível crítico onde as antigas ideias dominantes se tornam insustentáveis, o que pode conduzir à introdução de novas suposições – geralmente incompatíveis com o antigo modelo.
Quando o número e a gravidade das anomalias crescem no domínio de uma determinada ciência e um novo conjunto de suposições ou de padrões que dá conta de explicá-las atinge um grau de consistência suficiente para substituir o outro, pode haver troca de um paradigma por outro.
Isto significa que o antigo modelo está superado por um novo, mais satisfatório. Bem... Isto pode ocorrer com o Espiritismo?
Silvio Seno Chibeni em seu artigo “O Paradigma Espírita”, publicado no site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp, esclarece: “O exame isento e criterioso da situação mostra de forma inquestionável que o Espiritismo não experimenta, nem jamais experimentou, qualquer processo de acumulação de anomalias, e muito menos em seus pontos essenciais, acumulação essa que constitui, segundo Kuhn, um pré-requisito para o desencadeamento de uma crise, capaz de justificar a proliferação de teorias alternativas, e, eventualmente, a substituição do paradigma. Aproveitamos para notar aqui que, em vista disso, incorreram em erro científico aqueles que, já desde os primeiro tempos, têm desenvolvido suas pesquisas fora do paradigma espírita. Não há razões científicas para essa atitude, que só contribui para a dispersão de esforços tão prejudicial ao avanço do conhecimento, como mostrou Kuhn.”
Não há, portanto, razão para se pensar em necessidade de atualização da ciência espírita. O paradigma espírita, representado por suas concepções metafísicas, suas teorias, sua metodologia e os exemplos de sua prática permanece como diretriz segura de pesquisa para quem deseje praticar a ciência espírita.
Chibeni oferece um segundo argumento em favor desta posição: “A segunda parte de nossa resposta passa pela observação de que, dada a natureza específica do paradigma espírita, não se deve esperar que tenha um dia que ser abandonado ou modificado em seus princípios fundamentais. A razão disso é que, exceto por alguns princípios reguladores abstratos, tais princípios encontram-se muito próximos do nível fenomênico, de modo que, utilizando-nos da nomenclatura filosófica, poderíamos classificar a teoria espírita como essencialmente fenomenológica.(...) Por ser fenomenológica, ela goza de uma alta estabilidade diante do progresso de outras áreas da ciência, havendo atravessado incólume as radicais mudanças de paradigma ocorridas na física nas primeiras décadas de nosso século. (...) Sua confirmação independe totalmente de aparelhos, conforme bem enfatizou Kardec, o que é uma enorme vantagem do ponto de vista epistemológico, pelas razões esboçadas acima. São proposições da mesma classe epistêmica que, digamos, as proposições de que o Sol existe, de que o fogo queima, a cicuta envenena, etc. Notemos que a inferência espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais não difere em nada das inferências que fazemos a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo, o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não nos acudirá a ideia de que elas não foram escritas por um determinado amigo, quando relatam fatos, contêm expressões e veiculam pensamentos peculiares e íntimos. Exatamente o mesmo se dá com os variados e abundantes casos de psicografia de que somos testemunhas. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente para eliminar qualquer dúvida quanto ao princípio básico da Doutrina Espírita, a existência e sobrevivência do espírito.”

Ciência não-espírita do espírito?

“Como se isso não bastasse, a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações, vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia, etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica, a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se também em inúmeros fenômenos ordinários. Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossa vida, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos, aos sonhos, à evolução das espécies e das civilizações, etc. Entendemos que a desconsideração desse vasto corpo de evidências a favor do Espiritismo constitui séria omissão por parte de seus críticos e daqueles que tentam fazer ciência não-espírita do espírito.” – conclui Chibeni.
Ou seja, o Espiritismo tem um repertório próprio de fenômenos estudados e de problemas a analisar, uma metodologia própria e eficiente e, graças a Kardec, vêm acompanhados da importante noção de progresso, ou seja, de que o conhecimento não é estanque.
O que Luiz Gonzaga Pinheiro propõe não é uma atualização da ciência espírita, nem do Espiritismo. Como ele mesmo diz, poderíamos acrescentar notas de rodapé, dizendo o que a ciência tem descoberto a respeito dos planetas, da matéria, mas sem que isso redunde em mudança estrutural das teorias espíritas sobre o universo material e espiritual.
Quanto aos conhecimentos de química e astronomia, recordemos que Kardec escreveu muitas vezes levando em conta os avanços da ciência da época, que vivia sob a luz de outro paradigma, e isto não deve diminuir o valor nem a importância do conjunto da obra kardeciana. Afinal, ela é também um testemunho de seu tempo em alguns trechos, sendo permanente quanto aos seus aspectos fundamentais.
Parece-nos pouco fundamentada a opinião de que a ciência espírita se perderá, em vinte anos, se não for atualizada segundo a linguagem da ciência atual. Afinal, a ciência que se faz hoje pode estar desatualizada em vinte anos, enquanto que o Espiritismo poderá manter seu vigor e sua atualidade.
Além disso, falando do caráter progressivo, Allan Kardec se referiu, na “Constituição do Espiritismo”, especificamente a mudanças que atingissem as bases do entendimento espírita da realidade, ou seja, a sua concepção das leis naturais. Ele não se referiu às adequações de nomenclatura, as quais são sempre perigosas, já que os termos de uma teoria nascem dentro dela, para servir aos seus próprios objetivos, e dificilmente podem ser transplantados para outros contextos sem que algo se perca ou desvirtue.
Antes de pensar em atualizar o Espiritismo, é mais importante estudá-lo na profundidade e atenção que ele merece, para poder perceber sua real importância e peculiaridade, como a mais completa e frutífera ciência do Espírito que a Humanidade já produziu.



Kuhn como autor relevante em filosofia da ciência

Apesar de não ter recebido nenhum treinamento formal em história, Thomas Kuhn conseguiu com o seu ensaio em forma de livro transformar radicalmente o cenário mundial da filosofia da ciência e história da ciência. Como disse um de seus raros estudantes de doutorado e um de seus primeiros colaboradores, o historiador da ciência norte-americano John Heilbron, Kuhn “foi o mais influente analista do desenvolvimento científico durante o período final do século 20”.
A tese mais importante e conhecida de A Estrutura das Revoluções Científicas afirma que a ciência não se desenvolve através da obediência rígida a cânones metodológicos, mas, sim, por empreender uma prática convergente e unificada de pesquisa, possível por meio da aquisição de paradigmas. O conceito central da reconstrução da racionalidade científica levada a cabo por Kuhn é o de paradigma. Para ele, o paradigma determina a cientificidade de uma área específica de investigação.”
Segundo Kuhn, devemos compreender paradigmas como “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes”. Ou seja, uma das funções mais importantes que o paradigma desempenha é a de engendrar o consenso dentro de uma determinada comunidade científica, delimitando os fatos relevantes a serem investigados, elegendo os métodos adequados de abordagem e prescrevendo as soluções legítimas. (Revista Ciência Hoje, Dezembro de 2002)


_____
* Este texto foi publicado originalmente na Edição 54 da Revista Universo Espírita, sob o título "A ciência espírita está desatualizada?" 

Nenhum comentário:

Postar um comentário